terça-feira, 19 de julho de 2022

 CURRÍCULO ACADÊMICO E PERFORMANCE MINISTERIAL:

A formação pastoral batista brasileira para o contexto hipermoderno.


ACADEMIC CURRICULUM FOR MINISTERIAL PERFORMANCE:

Brazilian Baptist pastoral formation for the hypermodern context.

Diogo Souza Magalhães1

RESUMO: o presente artigo constata situação de tensão na relação pastores x igrejas no contexto batista brasileiro, com grande desgaste para ambos. Reconhece que isso se deve às inúmeras mudanças geradas pela cultura-mundo hipermoderna, à inserção de uma nova mentalidade e consequentes mudanças contínuas na sociedade atual, inclusive nas igrejas batistas, e à falta de adaptação e inovação curriculares dos cursos de Graduação em Teologia, o que compromete a formação pastoral e a satisfação das igrejas. Propõe mudanças na educação ministerial, especialmente, quanto ao currículo acadêmico dos cursos de Graduação em Teologia das instituições batistas, para que essa situação com muitos de seus dissabores sejam superados.

PALAVRAS CHAVE: Currículo Acadêmico, Performance Ministerial, Batistas, Formação Pastoral, Hipermodernidade.

ABSTRACT: The present article examines the tension in relationships between Brazilian Baptist pastors and churches, and the impairment that results to both. It affirms that the friction results from abundant changes generated within the hypermodern world culture context, which is bolstered by a new mentality that triggers continual changes to current society, including among Baptist churches. The strain is intensified by the lack of adaptation and innovation in the curricula of theological higher education, which in turn compromises the preparation for pastoral ministry and impedes the satisfaction of churches. Changes are proposed for ministerial education, particularly with regard to the academic curriculum and theological courses in Brazilian Baptist institutions of higher education, so that the current situation, with its distasteful ramifications, might be overcome.

KEY WORDS: Academic Curriculum, Ministerial Performance, Baptists, Pastoral Formation, Hypermodernity.

Introdução

A educação ministerial (ou religiosa) é tão antiga quanto a educação profissional secular. Assim como a educação em geral possui sua história marcada por tendências, ênfases, teorias e “escolas”, também a educação teológica se desenvolveu acompanhando os desdobramentos históricos e religiosos, produzindo suas próprias ênfases, teorias e tendências para cada geração, acompanhando o que os alemães chamam de zeit geist, ou espírito do tempo.

1 O autor é graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil (STBNB), em Recife – PE, com convaliadação de Diploma de Graduação em Teologia pela Faculdade Teológica Sulamericana (FTSA), em Londrina – PR. É pós-graduado em Docência do Ensino Superior pelo Instituto Tocantinense de Pós-Graduação (ITOP), em Palmas – TO. É membro da Fraternidad Teologica Latinoamericana, FTL – B, desde 2012.

A necessidade de ajustamento e atualização na educação é fruto da dinamicidade da história, da sociedade e do homem. Novas visões de mundo e da realidade, novas maneiras de se relacionar e novas formas de ensinar e de aprender requerem abordagens educacionais inovadoras, técnicas pedagógicas aprimoradas e conteúdos acadêmicos contextualizados, para que o educando possa conhecer, fazer, ser e se relacionar de maneira eficaz.

Ao pensar na formação ministerial é preciso levar em consideração o fato de que não se pode simplesmente ensinar da mesma forma, usar os mesmos materiais, técnicas e conteúdos das gerações passadas, sob risco de se perder a relevância e eficácia educacionais. É necessário renovar o processo de formação profissional para que as faculdades de teologia tenham os mais capacitados egressos quanto possível, aptos a desenvolverem sua performance ministerial eficazmente diante da desafiadora realidade do mundo contemporâneo.

Para que o processo de educação ministerial seja cumprido competentemente são requeridos ajustes curriculares constantes nos cursos de Graduação em Teologia. Isso não quer dizer que os ajustes devem acontecer somente nos currículos, pois também o processo e estrutura educacionais devem ser revistos. Mas, é interesse deste trabalho destacar a questão curricular, por considerá-la preponderante no desenvolvimento da práxis pastoral. A educação ministerial não deve apenas repetir a tradição, por melhor que ela seja, mas necessita ser renovada, passando por constantes mudanças, assim como acontece com o perfil que estudantes e profissionais precisam ter e que as igrejas e comunidades desejam ver em seus ministros, conforme pensa Hardy, ao dizer que “(o) currículo não deve refletir primariamente as tradições de seu glorioso passado, mas ser um caminho integrado e deliberado para equipar as pessoas reais que estão estudando agora para os ministérios reais que elas terão.” (HARDY, 2007, p. 158).

É a partir da constatação dessa urgente necessidade que este trabalho reflete sobre o tema “CURRÍCULO ACADÊMICO E PERFORMANCE MINISTERIAL: A formação pastoral batista brasileira para o contexto hipermoderno”. Considera-se na atualidade que há necessidade de profundas melhorias na qualidade dos ministérios, o que perpassa pela excelência dos cursos de teologia, e, em especial, pela adaptação e contextualização curriculares nas instituições teológicas contemporâneas, a fim de que os futuros ministros sejam devidamente preparados para desenvolverem suas funções com competência e eficácia.

Observa-se que há uma crescente complexidade na realidade e uma contínua transformação cultural no mundo ocidental. Educar se tornou um grande desafio, principalmente quando se pensa em formar e capacitar pessoas que irão enfrentar a

Hipermodernidade (LIPOVETSKY & SERROY, 2011), contexto marcado pela radicalização da Modernidade, gerando constantes mudanças, muitas pressões, saturação de informações, relativismos, pluralismo, esfacelamento e recrudescimento das identidades, intensificação das responsabilidades pessoais e uma necessidade constante de aprimoramento da performance.

Ao abordar a formação teológico-pastoral, observa-se neste início de século a existência de ministérios religiosos curtos temporalmente, marcados por conflitos, críticas, desgastes e deserções, o que produz ao longo do tempo uma profunda aridez, que torna a vida dos pastores e das igrejas infrutíferas. No que diz respeito às igrejas batistas, há inúmeras demandas que esperam por suprimento (MORAES, 2012), o que desencadeia cobranças de “direitos”, diferentes gostos e tendências eclesiásticas almejados, além de desejos por inovações técnicas e de novos modelos empresariais, de liderança, de planejamento e de desenvolvimento das ações ministeriais. No que tange aos pastores, por outro lado, há múltiplas ações a serem desenvolvidas (GREEN, 2016), desde aquelas vistas como estritamente religiosas, como pregação, evangelização e aconselhamento pastoral, àquelas consideradas mais secularizadas, como administração, planejamento estratégico, técnicas de crescimento de igreja, etc.

De um lado, as igrejas reclamam do despreparo e da falta de qualificação de muitos ministros (MORAES, 2012), do outro, os pastores reclamam das múltiplas e inúmeras exigências ministeriais (GREEN, 2016). Não são poucos os ministros na atualidade que se sentem cansados, desanimados e até doentes (LIPOVETSKY & SERROY, 2011; PEREIRA, 2013). Cresce o número de casos de Síndrome de Burnout, depressão e crises de pânico (PEREIRA, 2013) entre pastores e líderes eclesiásticos. Dessa maneira, uma crise foi se estabelecendo nas últimas décadas na relação igrejas x pastores, seja nas igrejas em geral ou mesmo nos “arraiais” batistas, produzindo muito desconforto e desgastes para todos os envolvidos (MORAES, 2012; GREEN, 2016).

Parte do problema está ligado à formação ministerial. A forma como a educação pastoral é realizada, seus objetivos, sua estrutura, seu conteúdo e sua visão muito influenciam esta questão. Acredita-se que esteja especialmente vinculada ao desenvolvimento curricular dos cursos de Graduação em Teologia que, em grande parte se encontram defasados, não contemplando temas contemporâneos importantes e não abordando problemas atuais da complexa conjuntura mundial. Infelizmente poucas instituições teológicas estão formando ministros focados na interdisciplinaridade, nos múltiplos saberes e competências do educando/profissional, nas diferentes especializações ministeriais, na necessidade dos ministros receberem contínua educação, mesmo depois de concluída a graduação.

Este trabalho é, portanto, justificado pela crescente crise que se instaura na relação entre comunidades de fé (Igrejas Batistas) e seus ministros (pastores), bem como pela necessidade de se repensar a formação curricular dos cursos de Graduação em Teologia no contexto batista brasileiro, adequando-os e contextualizando-os às novas tendências do mundo hipermoderno e às demandas das igrejas e do ministério pastoral, para que os graduados bem capacitados egressos das casas de formação tornem-se pastores mais eficazes na labuta ministerial. Sobre isso, Almeida afirma que “precisamos de lideranças bem formadas para atender à demanda da crescente igreja evangélica no Brasil” (ALMEIDA, 2009, p. 51), e Proença acrescenta que “o competitivo ‘mercado religioso’ pede novos perfis de liderança” (PROENÇA, 2011, p. 57), o que requer uma capacitação mais adequada e contextualizada para hoje. Para isso, a presente pesquisa propõe novas inserções nos cursos de teologia através de “ênfases curriculares gerais” como parte da resposta para os anseios quanto ao futuro da educação ministerial batista e o futuro do ministério pastoral nas igrejas da Convenção Batista Brasileira (CBB).

Tal proposta visa suprir parte dos desafios para a educação ministerial contemporânea brasileira, propondo relacionar a educação teológica batista ao mundo hipermoderno, dentro do qual a religião, e mais especificamente a igreja, estão inseridos, problematizando esta relação.

Considerando todas essas questões, levanta-se o seguinte problema: os cursos de Graduação em Teologia das instituições batistas estão cumprindo adequadamente o seu papel, formando pastores aptos e eficazes para o desempenho ministerial, ou precisam de atualizações para cumprir seu papel eficientemente? Como problemas específicos, perguntam-se: 1) Como a realidade atual se apresenta e como influencia a religião e a formação dos pastores? 2) Que perfil de educação ministerial se almeja desenvolver para as Faculdades Teológicas Batistas no Brasil? 3) Que tipos de alterações curriculares são necessárias e urgentes para tornar os currículos mais adequados diante da atual realidade, e os pastores mais eficientes no desempenho de seus ministérios?

O trabalho possui, portanto, o seguinte objetivo geral: investigar a necessidade de adequações curriculares urgentes nos cursos de Graduação em Teologia em tempos hipermodernos, em meio a grandes desafios, para tornar a formação dos pastores batistas mais eficaz. São propostos também os seguintes objetivos específicos: 1) compreender a complexidade da hipermodernidade e as implicações da cultura-mundo sobre a religião, as igrejas e, consequentemente, sobre a formação profissional dos pastores batistas; 2) apresentar um perfil de educação ministerial para formar pastores batistas para o enfrentamento do ministério pastoral em meio aos grandes desafios contemporâneos; 3) propor contextualizações e adaptações curriculares necessárias aos cursos de teologia através de ênfases curriculares, para a melhor formação teológico-pastoral batista brasileira contemporânea, tornando-a mais eficiente ao preparar pastores mais eficazes.

O caminho trilhado é o da relação dos pastores e igrejas com o mundo hipermoderno, da apresentação de uma visão para a educação ministerial na atualidade e o das propostas de alterações curriculares para tornar os cursos de Graduação em Teologia mais relevantes, num mundo desorientado, como bem afirma Lipovetsky (LIPOVETSKY & SERROY, 2011).

1. Cultura-mundo, a radicalização da modernidade e suas implicações sobre a igreja e o ministério pastoral

Nos últimos 60 anos o mundo passou por mudanças substanciais. O processo da Modernidade se intensificou, produzindo rupturas com o passado e novas perspectivas para o presente e o futuro, tornando a realidade do mundo ocidental muito mais complexa. Teóricos perceberam estas mudanças e tentaram decifrar o mundo contemporâneo. Ressalta-se Jean-François Lyotard, filósofo francês muito influente na década de 80 do século passado, que escreveu importantes obras sobre a contemporaneidade. Na principal delas, O Pós-Moderno (LYOTARD, 1986), o filósofo francês apresenta a “Pós-Modernidade” como a transição entre o moderno propriamente dito e o futuro ainda não definido. Apesar das indefinições observadas por ele, algumas características podem ser elencadas como sendo do contexto pós-moderno: a troca da verdade pela performance e seus resultados, o relativismo, o pluralismo, a crença no convívio harmonioso entre as diferenças, a desconfiança nas metanarrativas, ou seja, nos discursos totalitários que procuram descrever a realidade e trazer respostas definitivas e finais, e a paralogia, que seria a capacidade de perceber "anomalias" na realidade, que conduzem à construção de novos conceitos. Há nessa primeira visão a desconstrução de boa parte do que foi considerado Modernidade e há indicativos de abertura para inovações contínuas no futuro.

Um segundo autor que muito contribuiu para o estudo da contemporaneidade foi Zygmunt Bauman, sociólogo polonês radicado na Inglaterra, que escreveu várias obras onde apresentou sua percepção da contemporaneidade. Sua principal obra é considerada Modernidade Líquida (BAUMAN, 2002). Para ele, a “Modernidade Líquida” seria o desdobramento da própria Modernidade, agora marcada pela liquidez, volatilidade, fluidez, inconstância, rápidas mudanças, incertezas, insegurança, medo crônico (BAUMAN, 2008) e

superficialidade relacional (BAUMAN, 2004). Para o sociólogo polonês a “modernidade sólida” foi abandonada para dar espaço à lógica do aqui, do agora, do consumo, do prazer e da artificialidade. Nessa segunda visão observa-se o desenvolvimento de uma mentalidade marcada pela volatilidade e falta de substância, capazes de produzir incertezas, insegurança e medo, gerando percalços nos relacionamento humanos, tornando tais relações muito mais “conexões” do que “relações profundas” (BAUMAN, 2004).

O terceiro autor, talvez o mais importante na atualidade a descrever o mundo atual, é o francês Gilles Lipovetsky, que escreveu em conjunto com Jean Serroy a importante obra A Cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada (LIPOVETSKY & SERROY, 2011). Para Lipovetsky, o atual contexto histórico é marcado pela radicalização da Modernidade, daí seu conceito de “Hipermodernidade”, ou seja, a modernidade levada ao extremo, marcada pela desorientação cultural, pela ideia de uma cultura hipertecnológica, hiperconsumista, efêmera, individualista, homogeneizada, onde há perda de identidades, “ditadura” da responsabilidade, pressões contínuas sobre os indivíduos e mercantilização de todas as esferas da vida humana, inclusive, da religião. Para essa interpretação do mundo contemporâneo há certo desenvolvimento anômalo e patológico, que compromete a vida dos indivíduos e da sociedade como um todo.

Foi na Hipermodernidade, esse mundo complexo, confuso e desorientado, que o teólogo brasileiro Jilton Moraes (MORAES, 2012) percebeu inúmeras mudança de mentalidade nas igrejas, especialmente nas igrejas batistas brasileiras, ao se tornarem mais “organizadas”, profissionalizadas, estruturadas e exigentes. Notou também alterações na vida dos cristãos, que se tornaram mais críticos, cônscios de seus direitos, autônomos e mais exigentes com a performance de seus pastores. Dessa forma, o autor chegou à conclusão de que há despreparo de muitos ministros para o exercício de suas funções, principalmente quanto ao ofício da pregação (área específica de sua pesquisa) e que em muitos casos o descuido e a falta de dedicação se unem à incapacidade, produzindo o fracasso ministerial.

Analisando o mesmo problema, mas por outro viés e em outro contexto, a pesquisadora norte-americana Lisa Cannon Green (GREEN, 2016), em seu atual e interessantíssimo artigo sobre a deserção pastoral, constata que o acúmulo de atividades e de atribuições, o excesso de cobranças, as inúmeras pressões por contínuas mudanças e inovações, os desentendimentos e a desconfiança mútuos estão produzindo nos pastores o seu esgotamento, gerando enfermidades diversas, problemas familiares e desgosto profissional, levando muitos pastores a abandonem a carreira ministerial, mudando de profissão em busca de maior realização pessoal e de mais tranquilidade.

Foi também a partir de outro contexto, o da Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil, que o pesquisador William Cesar Castilho Pereira (PEREIRA, 2013) fala sobre os terríveis sofrimentos dos presbíteros no exercício ministerial e como situações semelhantes às que acontecem nos arraiais evangélicos também afetam a liderança católica, produzindo enfermidades psíquicas e psicossomáticas, levando muitos à aposentadoria precoce ou ao abandono do ministério.

Segundo o historiador Wander de Lara Proença (PROENÇA, 2001), foi por influência do contexto secular contemporâneo que algumas características começaram a se manifestar em relação à visão e ao desempenho ministeriais no Brasil, gerando várias interferências na relação pastores x igrejas: 1) para a cultura religiosa hodierna, competência profissional e bênção divina estão vinculadas ao crescimento numérico das igrejas: se há crescimento, há competência e bênção. Essa compreensão tem levado muitos pastores ao mais profundo esgotamento físico e emocional na busca de alcançar patamares cada vez maiores de crescimento, por causa da cobrança de suas igrejas (e às vezes cobranças feitas por eles mesmos!); 2) o desenvolvimento de uma visão que aproxima o ministério pastoral da “cultura das celebridades”, o que encaminha muitos pastores a se sentirem e a serem vistos como verdadeiras celebridades. O resultado dessa percepção é a formação de uma visão personalista de ministério e os sentimentos de infalibilidade e inquestionabilidade, “empurrando” muitos ministérios à bancarrota, devido ao excesso de vaidade; 3) a banalização da atividade do ministério pastoral, o que conduz qualquer pessoa a se tornar pastor, sem a devida vocação e sem o esperado preparo, movidos muito mais por interesses alheios ao ministério. A ideia de celebridade ligada ao ministério pastoral desenvolve certo glamour, que não é real. Resultado: pessoas sem vocação legítima para o ministério se frustram em busca de reconhecimento humano; e 4) o crescimento da interação entre o universo cultural e o campo religioso, aumentando a influência da cultura-mundo sobre o ministério pastoral, transformando o outrora “homem de Deus”, em um “executivo da fé”.

Esse é infelizmente o quadro que se apresenta como sitz im leben, ou pano de fundo, da relação igrejas x pastores na atualidade. O mesmo quadro se reproduz em parte no meio batista, o que leva ao reconhecimento de que mais do nunca a igreja precisa de pastores, de “homens de Deus”, não de empresários da fé, de celebridades ou de gurus personalistas.

Ao se constatar, portanto, a crise na relação entre os pastores e suas e igrejas, urge repensar a formação pastoral para este novo momento histórico.

2. Educação emancipadora, crítica e capacitadora de pastores para a Hipermodernidade

A teologia protestante é construída através da interpretação das Escrituras em relação ao mundo ao seu redor. Da mesma forma, a educação teológica protestante necessita ser desenvolvida levando-se em consideração essas duas esferas, utilizando-se das tradições educacionais cristãs do passado e da leitura de mundo atual, com suas tendências, filosofias e técnicas, para desenvolver modelos capazes de formar pessoas para o bom desempenho ministerial.

Quando se pensa nos pilares escriturísticos da formação teológica e ministerial, devem ser usados todos os ensinamentos bíblicos, especialmente do Novo Testamento, que versam sobre a formação espiritual e ética dos pastores e ministros em geral. Nada há de novo ou desconhecido quanto a este assunto no meio batista.

Quando se fala dos pilares ligados ao pensamento educacional e teológico contemporâneos, entretanto, há muito que considerar para capacitar adequadamente os ministros diante da Hipermodernidade.

Defende-se nos últimos anos que o ensino acadêmico deve formar pessoas para “ser”, para “conhecer”, para “fazer” e para “viverem juntos”. Tal compreensão é conhecida como “os quatro pilares da educação”, segundo relatório da UNESCO (DELORS, 2012). Muitas vezes percebe-se certo reducionismo educacional, como se o ensino acadêmico tivesse como prioridade apenas ensinar a “fazer”, tornando o acadêmico num profissional de determinada área capaz de dominar as técnicas de uma ciência ou profissão. Ledo engano, pois a tarefa da educação acadêmica, especialmente das Faculdades de Teologia, vai muito além. Mais do que “saber fazer”, dominando técnicas vinculadas à esfera profissional, o acadêmico de teologia deve “saber conhecer”, desenvolvendo a capacidade de estudar por conta própria, realizando certo autodidatismo para que continue se sentindo inquietado e estimulado a prosseguir nos estudos ao longo de sua vida. Precisa, também, “saber ser”, pois um ministro religioso necessita desenvolver concordância entre suas palavras e seus atos, elaborando um “discurso competente”, sem contradições. Deve ele “ser sempre mais e melhor”, passando por um processo contínuo de aperfeiçoamento, não por causa dos outros, mas para a glória de Deus. No mais, o pastor precisa saber “viver junto”, desenvolvendo a fraternidade, a paz relacional e o espírito de solidariedade. O ensino acadêmico aqui objetivado precisa trazer elementos curriculares que proporcionem aos estudantes de teologia todos os quatro níveis de capacitação, para que os futuros pastores tenham uma formação integral.

Para compreensão mais prática dessa formação integral, o futuro ministro necessita ser incentivado na academia a desenvolver algumas características fundamentais para a sua vida e profissão. Na esfera do “ser” deve desenvolver espírito de liberdade, senso de autonomia, capacidade de resistência, resiliência, senso de responsabilidade, postura ética, espiritualidade sadia e consistente, inteligência emocional, capacidade de trabalho em grupo. Na esfera do “conhecer”, ele precisa ter acesso ao embasamento teórico, incentivo à pesquisa, capacidade de síntese e de análise, senso crítico e manifestação de capacidade dialógica. Na esfera do “fazer” necessita de acesso ao conhecimento empírico, a laboratórios e estágios, acesso a bons exemplos e paradigmas, ao desenvolvimento de criatividade e de capacidade de inovação. Na esfera do “viver junto”, deve aprender a valorizar o espírito de equipe, o trabalho em grupo, o valor dos bons relacionamentos e a necessidade de desenvolver inteligência emocional.

O embasamento teórico para que essa visão educacional seja desenvolvida é feito através da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que tem como principais protagonistas os filósofos alemães Max Hokheimer e Jürgen Habermas (MORROW & TORRES, 1998). A Escola Crítica Alemã procurou fazer a síntese do pensamento de Marx e Freud, trazendo novas contribuições ao pensamento do Século XX. Ela apresenta uma percepção não ingênua do sujeito que observa a realidade, capaz de fazer leituras ideológicas e políticas de cada conjuntura, possibilitando-o a se situar no processo educacional como sujeito pensante, autônomo, crítico e agente de transformação, com forte elemento emancipador. Talvez um dos maiores desdobramentos da visão frankfurtiana seja o da Pedagogia da Libertação (ou do Oprimido, ou ainda da Autonomia) elaborada pelo educador brasileiro Paulo Freire (FREIRE, 1987), que, seguindo a mesma tendência da Teoria Crítica desenvolveu propriamente uma “Pedagogia Crítica”, também com forte teor emancipatório e de desenvolvimento de autonomia pessoal (FREIRE, 1996), voltada especialmente para o ideal de liberdade (FREIRE, 1967). O interesse nessas tendências pedagógicas é o de possibilitar ao acadêmico não apenas uma leitura “crítica” da realidade, mas também uma leitura “crítica da crítica”, capacidade que o educando/pastor precisa desenvolver, levando-se em consideração a forte “doutrinação política e ideológica” na mídia, nas instituições educacionais e sociais contemporâneas no início deste século. O acadêmico e o pastor devem ser capazes de ver por trás das palavras, das imagens e das situações, percebendo não somente o que foi dito ou manifesto, mas também o que ficou escondido.

Partindo de uma filosofia da educação secular e pensando numa tendência de formação ministerial cristã, este trabalho faz a ponte entre Teoria Crítica, Pedagogia da Libertação e o pensamento do teólogo norte americano Eugene Peterson (PETERSON & DAWN, 2001), que propõe o conceito do “pastor desnecessário” como visão pastoral para o

Século XXI. Para Peterson, pastor desnecessário é aquele que investe sua vida de tal forma na formação de outras pessoas que, ao invés de aprisioná-las ou “domesticá-las”, as torna conscientes, livres, autônomas, críticas, capazes de gerir a sua vida e decidir seu próprio caminho. Esta é uma visão bem diferente de ministério das que tradicionalmente foram produzidas nos últimos séculos, já que muitas delas tornavam as pessoas dependentes dos pastores e das instituições. A visão do teólogo estadunidense é emancipadora e libertadora, desenvolvendo um senso de submissão do cristão diretamente para com Deus, confirmando o “princípio do livre sacerdócio do crente” tão caro à Reforma Protestante (CAIRNS, 2009).

Dessa forma, os cursos de Graduação em Teologia serão desenvolvidos a partir desses parâmetros teóricos e desenvolverão tais princípios e ideias entre os seus acadêmicos, para que ao longo do ministério estes os multipliquem entre os membros de suas igrejas e seja possível visualizar futuramente uma geração mais consciente, crítica e livre para servir ao Senhor.

3. Urgência de um upgrade na formação pastoral, através de importantes alterações curriculares dos cursos de teologia

Os cursos de Teologia são bastante antigos, datando da transição da Idade Antiga para a Idade Média, nascendo do esforço de pensar racionalmente a fé testemunhada nos textos bíblicos antigos. Foram potencializados no contexto da Escolástica no medievo, que, inclusive, diferenciou a Teologia Bíblica da Teologia Especulativa, enfatizando a segunda em detrimento da primeira. Foi nessa época que Tomás de Aquino deu o caráter de “ciência” à Teologia (DA SILVA, 2010, p. 03). Posteriormente, na Reforma Protestante houve a divisão teológica entre os cursos católicos e os protestantes, sendo os primeiros mais especulativos e os segundos mais bíblicos. Na Modernidade, os cursos de Teologia Protestantes acompanharam o desenvolvimento das ciências modernas, dialogando com elas, o que trouxe grande crescimento ao Pensamento Protestante, enquanto a Teologia Católica, firmada no Concílio de Trento, permaneceu arraigada à filosofia medieval. No Século XX a Teologia ganhou notoriedade em vários lugares do mundo, especialmente na Europa e nos EUA. No Brasil, entretanto, devido ao seu caráter basicamente confessional e à influência do Positivismo nas academias brasileiras, os cursos de teologia não tiveram reconhecimento até bem pouco tempo, sendo desenvolvidos como “cursos livres” em instituições confessionais e sem o controle direto do Estado. No máximo, tais cursos eram organizados e agrupados em instituições como a Associação Brasileira de Instituições Batistas de Ensino Teológico (ABIBET), Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE) ou a Associação Evangélica Teológica da América Latina (AETAL), que tentavam homogeneizar os cursos e os currículos teológicos no meio evangélico.

Desde que os cursos de Graduação em Teologia foram reconhecidos pelo MEC, através do Parecer CNE/CES nº 296, aprovado em 17 de março de 1999 (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 1999) os mesmos passaram a ser regulamentados pelo Ministério da Educação, que legitimou sua estrutura, seu credenciamento, seu reconhecimento, inclusive definindo o currículo comum (ou mínimo) que todas as IES deveriam seguir, com liberdade de acrescentar e adequar o currículo às respectivas realidades institucionais confessionais, como afirma o Parecer CNE/CES nº 60/2014, aprovado em 12 de março de 2014: “os cursos de bacharelado em Teologia sejam de composição curricular livre, a critério de cada instituição, podendo obedecer a diferentes tradições religiosas” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 2014, p. 15).

O Projeto de Resolução que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Teologia, que ainda não foi oficialmente emitido, bem como o parecer acima, do qual faz parte, que também não foi oficialmente homologado, não tendo, portanto, valor legal, mas somente orientativo (ZABATIERO, 2015, p. 2222), em seu Artigo 7º, traz como proposta quatro eixos temáticos que servem de base pata a construção dos currículos dos cursos de Teologia reconhecidos pelo MEC. Assim estão apresentados:

Art. 7º Os conteúdos curriculares do curso de graduação em Teologia deverão ser organizados em quatro grandes eixos temáticos complementares entre si:

I - Eixo de formação fundamental;

II - Eixo de formação interdisciplinar;

III - Eixo de formação teórico-prática; e

IV - Eixo de formação complementar. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 2014, p. 45)

Para o Parecer/Projeto de Resolução, os quatro eixos são bem gerais e servem de parâmetro para as IES prepararem seus PPP (Projetos Políticos Pedagógicos) e as matrizes curriculares dos cursos. O Eixo de Formação Fundamental trata da formação básica e deve possuir disciplinas ligadas aos textos sagrados, à Teologia, à Tradição, às regras de interpretação, à História da Teologia e ao método teológico; o Eixo de Formação Interdisciplinar contempla conteúdos da cultura humanística, cultura geral, ética, e temas atuais ligados aos direitos humanos, educação étnico-racial, educação indígena, educação ambiental e sustentabilidade; o Eixo de Formação Teórico-Prática trata de conteúdos ligados ao perfil e às competências do teólogo definidos pela instituição, tanto no que se refere à sua prática eclesiástica, quanto social e cidadã; e o Eixo de Formação Complementar tem como objetivo possibilitar o estudo e as atividades independentes, opcionais, de interdisciplinaridade, tais como a participação em seminários extracurriculares, estágios, palestras, conferências, grupos de pesquisa, etc. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 2014)

Baseado na realidade instituída pelo MEC é possível constatar que a definição curricular contemporânea dos cursos de Teologia é fruto de vários elementos “como o cruzamento de vários aspectos, envolvendo concepção de conhecimento, interesses políticos, contexto sociocultural e modelos de aprendizagem.” (FREITAS apud DA SILVA, 2010, p. 03). O teólogo brasileiro Júlio Zabatiero, em seu recentíssimo artigo Repensando o Bacharelado Cristão em Teologia, faz uma leitura crítica deste Parecer, questionando o viés iluminista e a sua pedagogia conteudista subjacente, e denuncia a presença de dois paradigmas conflitantes no Parecer: o paradigma iluminista-conteudista e o paradigma construtivista-pragmatista (ZABATIERO, 2015). Ele faz uma análise muito pertinente e de caráter bastante teórico, onde questões vinculadas à filosofia da educação são tratadas e discussões são suscitadas.

Várias são as abordagens atuais curriculares nas instituições teológicas confessionais. Algumas seguem uma tendência escolástica, primando pela formação geral marcada pela excelência teórica e especulativa. Outros buscam uma abordagem confessional, que visa à formação específica de um determinado grupo, para uma finalidade objetiva. Há quem desenvolva currículos de tendência liberal e/ou multiculturalista e outros que criam currículos de linha fundamentalista ou utilitarista (PASSOS, 2004, apud DA SILVA, 2010. p. 06). À luz dessa pluralidade, o MEC faz a seguinte constatação:

vale dizer que, no Brasil, existem cerca de uma centena de cursos de Teologia, já autorizados ou reconhecidos, presentes em vários Estados. Eles são oferecidos por instituições públicas e particulares, pertencentes a mantenedoras confessionais ou não e contemplam teologias subjacentes a diferentes confissões: adventista, batista, católica, espírita, evangélica, luterana, messiânica, metodista, umbandista, entre outras. Trata-se de cursos de graduação com duração entre 1.500 e 4.500 horas. Considerando que se trata de cursos de graduação e em Teologia, bacharelado, recomenda-se que respeitem um mínimo de 2.400 horas. (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2014, p. 17)

Diante do exposto até aqui, isto é, a realidade do mundo contemporâneo, as necessidades das igrejas, a formação dos pastores, a crise na relação pastores x igrejas e os encaminhamentos do MEC quanto à educação teológica, este trabalho apresenta uma proposta de possibilidade de superação dessa conjuntura, através de sugestões de ênfases e adequações

para os currículos dos cursos de Graduação em Teologia das instituições confessionais batistas, com a finalidade de aprimorar a qualidade da capacitação oferecida aos futuros pastores que servirão às igrejas nas diversas regiões do país. A ideia é indicar sugestões de conteúdos, áreas de estudo, direcionamentos e ênfases quanto às perspectivas e práticas acadêmicas imprescindíveis à formação teológica atual. Isso é feito à luz dos quatro eixos temáticos curriculares propostos pelo MEC para os cursos de Teologia, da análise de conjuntura do mundo atual e das necessidades dos ministros e igrejas para este momento histórico.

As sugestões desta pesquisa, portanto, são as seguintes:

1. Que seja desenvolvida na área teológica uma visão nitidamente plural, apresentando aos acadêmicos as diversas possibilidades teológicas contemporâneas, tais como as vinculadas ao liberalismo, ao evangelicalismo, ao fundamentalismo, etc., com todas as nuances e interfaces, analisando criticamente as diversas propostas teológicas para o atual contexto, ressaltando as que mais respondem às questões levantadas pela Hipermodernidade e destacando as que podem contribuir de forma mais efetiva com os projetos eclesiásticos e missionários batistas. Para isso, é necessário reconhecer que “o estudo, a reflexão e a produção do saber são altamente valorizados e (devem ser) feitos com qualidade sem perder a visão missionária, espiritual e teológica” (PROENÇA, 2009, p. 22).

2. Que na área filosófica haja ampla discussão, inclusive sobre a temática da Hipermodernidade, capacitando o acadêmico a interpretar o mundo ao seu redor e a aplicar os conhecimentos e valores de sua fé numa sociedade marcada pela cultura-mundo. Deve-se evitar nesse eixo a “doutrinação ideológica”, independente da tendência, inclusive aquelas mais amplamente difundidas na academia brasileira nesse início de século. Que várias possibilidades e escolas filosóficas sejam igualmente apresentadas, analisadas, criticadas para se produzir uma visão mais rica, real e menos “enviesada” do mundo contemporâneo.

3. Que na área metodológica seja enfatizada a superação da simples reprodução e repetição teológicas. É necessário criar projetos de iniciação científica, através dos quais os acadêmicos pesquisarão a realidade religiosa, social e cultural do Brasil, articulando sempre entre teoria e prática, investindo em educação, pesquisa e extensão (PROENÇA, 2009, p. 26). Lugar especial deve ser dado à elaboração do TCC e de sua apresentação. Além disso, que uma base metodológica forte seja capaz de fundamentar todo o processo de educação continuada requerido na atualidade, ajudando o ministro a se atualizar em cada momento de sua vida e ministério. Na verdade, todos os conteúdos curriculares devem ser articulados “com mais pesquisa de campo e convivência com o povo, seus dilemas e imaginários” (PROENÇA, 2011, p. 57).

4. Quanto na área histórico-cultural seja reforçado a importância da compreensão histórica, mesmo que para muitos, em tempos hipermodernos, isso seja considerado irrelevante (HALL, 1997). Que os cursos de Graduação em Teologia façam o contraponto, apresentando a relevância da história para a leitura de mundo presente e para o reconhecimento de perspectivas futuras. Proença afirma que “seria interessante que os cursos de teologia priorizassem mais em seus currículos as disciplinas encarregadas de compreender os elementos da história, da cultura e das questões sociais configuradas no contexto.” (PROENÇA, 2011, p. 57). A Lei 9.394 de 1996, no Art. 43, Alínea VI, afirma ser característica e objetivo do ensino superior: “estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais (...)” (ALMEIDA, 2009, p. 46). Desta forma, com mais consciência histórica, ter-se-á uma igreja mais relevante socialmente e missiologicamente falando.

5. Que um relevante interesse seja dedicado aos estudos da área sociopolítica, a fim de que os acadêmicos sejam capazes de analisar a conjuntura regional, nacional e mundial. Que questões recentes sejam introduzidas nas discussões, como a geopolítica mundial, o êxodo do Oriente Médio, a islamização da Europa, a relação entre o Fundamentalismo e a Política, o Multiculturalismo, a questão das minorias, da inclusão, de gênero, a crise brasileira, entre outras, bem como seja realizado o estudo da conjuntura microrregional, tão significativo para a inserção da igreja no contexto local;

6. Que a área bíblico-linguística seja priorizada, pois é fundamental para a compreensão dos textos em geral, para a hermenêutica das Escrituras Sagradas, para a formação de identidade eclesiástica e para o fomento missionário. Num contexto de tantas “aberrações doutrinárias” necessita-se de uma doutrina fortemente embasada nas Escrituras. Por isso, como instituições confessionais, as Faculdades Teológicas Batistas precisam fundamentar seu saber em última análise nos princípios encontrados nas Escrituras Sagradas, tendo “a fidelidade à Escritura Bíblica, como fonte e a base de toda a reflexão teológica e acadêmica em geral” (PROENÇA, 2009, p. 26).

7. Que na área interdisciplinar a questão da aproximação das diversas disciplinas e ciências seja aprofundada, gerando realmente um pensamento dialogal com as diversas áreas de conhecimento. Que haja espaço ainda para a transdisciplinaridade e multidisciplinaridade. Almeida afirma que a teologia, como uma ciência integrante do grupo das humanidades, precisa, nesse sentido, dialogar interdisciplinarmente com aquelas que lhe são mais próximas tais como a história, sociologia, antropologia e filosofia. Esse diálogo amplia a perspectiva contextual e a prática da teologia trazendo-lhe o contraponto necessário para aproximá-la de sua vocação missionária e transformadora da realidade. (ALMEIDA, 2009, p. 46);

8. Que a área prático-ministerial seja valorizada para incentivar o acadêmico a “fazer”, através de disciplinas práticas de estágios supervisionados ou aulas que apresentem modelos, técnicas e exemplos eficientes e eficazes para o momento atual. Que haja incentivo à elaboração de projetos práticos e, quem sabe, desenvolver de forma contextualizada algo semelhante ao que muitas universidades chamam de “Empresa Júnior”, com a finalidade de treinar lideranças. Que se trate também de questões ligadas ao cuidado pessoal do ministro (saúde física e emocional, formação do caráter, desenvolvimento do espírito de serviço e vida familiar). O objetivo é possibilitar ao aluno uma educação integral, não apenas acadêmica e profissional, mas para a vida (PROENÇA, 2009, p. 26). Ainda dentro deste tópico, é importante introduzir elementos da teoria comunicacional e de mídia, pois estão diretamente ligados à essência do trabalho pastoral (PROENÇA, 2011, p. 58);

9. Que a área espiritual-devocional seja estabelecida com disciplinas e práticas que possam incentivar o acadêmico a cultivar a sua espiritualidade pessoal e coletiva, através do mentoreamento de tutores, de reuniões devocionais, cultos, “retiros” esporádicos, ou algo semelhante. Como bem afirmou Barro: “a espiritualidade não pode estar divorciada da vida acadêmica e a vida acadêmica não pode estar divorciada da vida espiritual. Essa separação não tem mais espaço em uma instituição teológica.” (BARRO, 2009, p. 30)

10. Por fim, que uma área sócio-relacional seja criada com disciplinas (ou mesmo atividades de extensão) para desenvolver nos acadêmicos e egressos o senso de coletividade, a superação do individualismo e das relações utilitárias, a noção de trabalhos grupais cooperativos, a melhoria e aprofundamento relacionais, num contexto de tanta aridez relacional e de relacionamentos tão superficiais (BAUMAN, 2004). Nota-se na atualidade a existência de poucos vínculos relacionais entre lideranças evangélicas entre si, e entre elas e o seus respectivos rebanhos. Muitos são os pastores que experimentam a solitude e a solidão. Isso precisa ser superado. Relações sadias e profundas precisam ser comuns aos pastores.

Também, sugere-se, independente de área específica, que alguns desafios sejam intensamente buscados, como a tentativa de diálogo e possível síntese entre tradição e contemporaneidade, teoria e prática, Bíblicidade e cientificidade, religiosidade e secularismo, globalização e regionalidade, teologia e interdisciplinaridade, profetismo e profissionalismo, formação acadêmica e formação para a vida, formação momentânea e capacitação continuada, continuidade e inovação, e espiritualidade individual e vida comunal e relacional.

Seguindo os conteúdos, ênfases e práticas acima os currículos serão posteriormente desenvolvidos em cada instituição, levando-se em consideração cada Projeto Político Pedagógico (PPP), cada realidade regional, cada perfil dos egressos da faculdade, além das competências e habilidades que são almejadas em cada situação.

Dessa forma, a organização curricular deve

superar os limites do paradigma escolar moderno, valorizando a multidisciplinaridade, a participação intensa do estudante na produção do saber, a razão como dimensão do ser humano a serviço do Reino de Deus e do bem-estar de toda a criação, o aperfeiçoamento permanente do corpo docente tanto nas suas habilidades acadêmicas quanto na sua vida pessoal e ministerial (PROENÇA, 2009, p. 26).

Urge, por fim, a necessidade de que as IES batistas (ou mesmo de outras denominações e seculares) possam se aproximar para discutir a visão de seus cursos de Teologia e a realidade de seus currículos para compartilharem experiências bem sucedidas e traçarem possíveis caminhos comuns. Sobre isso, Zabatiero afirma:

Um requisito para esse processo é a criação de espaços para diálogo e intercâmbio entre as IES, aproveitando as organizações já existentes em nosso campo e, quem sabe, mediante a criação de uma associação ou fórum de programas de bacharelado em teologia, que transcenda os limites ‘confessionais’ das organizações já existentes. (ZABATIERO, 2015, p. 2246).

Esses direcionamentos devem possibilitar a construção de currículos formados por disciplinas que capacitem os pastores a ministrarem em suas respectivas igrejas sendo líderes para o rebanho, íntegros, habilitados para desenvolver suas funções com excelência, desejosos de se capacitarem continuamente e aptos a repensarem suas vidas e ministérios diante de cada novo momento, conduzindo suas respectivas igrejas a cumprirem os propósitos de Deus para esta geração.

Considerações Finais

O mundo passa por mudanças profundas e contínuas. Um contexto de grande instabilidade foi gerado e segue para um destino que é impossível prever o final. Isso tem afetado todas as esferas da vida humana. Afeta também a religião e produz uma crise na relação pastores x igrejas que tem sido gestada no ventre da Hipermodernidade. Tal constatação requer que a educação teológica seja repensada e que novas possibilidades sejam apresentadas, entre elas, propostas de alterações curriculares e de ênfases nos cursos de Graduação em Teologia. Acredita-se que esta seja uma das formas de superação do problema.

Com tais propostas, intenciona-se capacitar adequadamente os futuros ministros e, dessa forma, superar o fosso entre igrejas e pastores, bem como grande parte das dificuldades, distorções e incompatibilidades entre ambos, para que os pastores sejam mais realizados e as igrejas sejam verdadeiramente relevantes nesse mundo desorientado, como diria Lipovetsky (LIPOVETSKY & SERROY, 2011).

Talvez no futuro próximo pesquisas de campo precisem ser realizadas para se levantar dados mais específicos sobre tal realidade nas diversas denominações brasileiras, a fim de se constatar se a crise existe em todos os meios, se os problemas são gerados pelas mesmas causas, se as consequências são as mesmas e se as possibilidades de solução do problema são semelhantes.

Essa pesquisa tem relevância para os estudiosos nas áreas da teologia, ciências da religião e pedagogia que tenham interesse nas diversas possiblidades de relações entre religião, educação, mercado religioso, igreja contemporânea, protestantismo brasileiro e ministério pastoral.

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Hipermodernidade e Religião Cristã: reflexões sobre a igreja e o ministério pastoral em tempos de consumismo, perda de referenciais e instabilidade

Diogo Souza Magalhães[1]

Introdução

Segundo Lipovetsky e Serroy (2011), estamos passando pelo que chamam de Hipermodernidade. Para tais autores, a Hipermodernidade seria uma nova fase da Modernidade marcada por um processo de intensificação e radicalização das tendências modernistas experimentadas até então.

Os conceitos de Hipermodernidade (LIPOVETSKY E SERROY, 2011), de Pós-Modernidade (LYOTARD, 1986) e de Modernidade Líquida (BAUMAN, 1998) são semelhantes, mas com ênfases diferentes. O primeiro apresenta a ideia de intensificação do processo de mudanças modernas, o segundo destaca a nova caracterização da Modernidade e o terceiro identifica os papéis da fluidez e da indefinição dos tempos modernos, respectivamente.

Na visão de Lipovetsky e Serroy (2011), a Hipermodernidade é caracterizada pelo hipercaptalismo, pela hipertecnicização, pelo hiperindividualismo e pelo hiperconsumo. Segundo os autores, o hipercapitalismo é a ingerência do Sistema Capitalista em todas as esferas da vida humana, sejam públicas ou privadas, teóricas ou práticas, interiores ou exteriores, pessoais ou coletivas, sagradas ou profanas. A hipertecnicização seria a dependência da humanidade em relação à técnica, às máquinas e à razão instrumental, tornando as pessoas sujeitas e dependentes das coisas, sejam computadores, celulares, web, aparelhos domésticos, máquinas industriais, etc.. O hiperindividualismo, por sua vez, seria a ênfase exagerada do indivíduo sobre o coletivo, reforçando a privatização da vida coletiva, dificultando os relacionamentos interpessoais e sociais. Sobre esse assunto, Bauman (2004) afirma que o homem atual prefere as “conexões” às “relações”, ou seja, as experiências relacionais são fluida, frágeis e superficiais, ao invés de profundas e duradouras. Por fim, o hiperconsumo, que seria a conjuntura onde tudo é reduzido à relação de consumo: seja a política, a religião, a cultura, o sexo, etc. (LIPOVETSKY E SERROY, 2011; BAUMAN, 2008).

Na estrutura de mundo apresentada pelos sociólogos franceses a cultura está profundamente marcada pelo mercantilismo, tornando-se mais um objeto de consumo, entre tantos outros (LIPOVETSKY E SERROY, 2011). A finalidade da cultura para o mundo atual não seria, como outrora, a difusão da ética, da estética, a formação técnico-cultural, ou a compreensão significativa da realidade, mas focaria essencialmente nos objetivos econômicos. Todas as esferas culturais estariam debaixo das leis mercantis, servindo aos interesses do Mercado, inclusive a esfera religiosa.

Sendo assim, o maior objetivo da cultura nos tempos hipermodernos seria o lucro, o que afetaria, também às esferas religiosa e eclesiástica, mercantilizando-as. Por isso, fala-se tanto sobre a supremacia do Mercado sobre a Religião, especialmente sobre a vida das igrejas e dos líderes religiosos - ditando propósitos, valores, missão, estrutura organizacional das instituições e performance dos atores religiosos, gerando em ambos profundas mudanças.

Esse artigo tem como objetivo, portanto, apresentar a influência do hipercapitalismo sobre a vida das igrejas, sobre a performance dos ministro religiosos e perceber o mal-estar experimentado na relação entre líderes eclesiásticos e instituições religiosas, apontando para os desgastes de ambos e para a resignifcação de seus símbolos e de suas práticas.

1 Hipercapitalismo e mercantilização eclesiástica numa abordagem lipovetskyana

Como apresentado acima, a influência do Mercado sobre a Religião é tremenda nesses tempos, ditando tendências, modelos, modismos, objetivos, etc. (LIPOVETSKY; SERROY, 2011). O estilo de vida atual, baseado no consumo, é regra em praticamente todo o mundo (BAUMAN, 2008), afetando as diversas áreas da vida pessoal e social. A forma de trabalhar, a maneira de estudar, o jeito de consumir, o modo de se comunicar, o costume de se informar, a maneira de adorar, tudo está envolto pela atmosfera do consumo. Por isso, números, quantidade, qualidade, avaliações, experiência do usuário (UX), planejamento estratégico, marketing, definição de visão e de missão, entre outras questões, se tornaram comuns na vida eclesiástica de instituições que têm como foco obter consumidores, e, por fim, o lucro. Como bem afirmou Pondé (2014), a religião se tornou nos últimos tempos uma experiência superficial, voltada para o entretenimento e baseada no consumo, algo muito parecido com a experiência de frequentar o Hopi Hari[2].

1.1 A influência poderosa do Mercado sobre a Religião no mundo atual

Muito pode ser abordado sobre tal influência do Mercado sobre a Religião, sobre as instituições religiosas e sobre os religiosos. A intenção nesse artigo, entretanto, é destacar as seis características abaixo, por serem bastante evidentes no métier religioso.

1.1.1 A Espetacularização do culto

A religião mercantilizada é marcada pelos espetáculos nos cultos (COX, 1974). Muitas liturgias atuais estão assumindo características de verdadeira panacéia. Pastores se tornaram showmen, o ambiente se tornou lúdico, a estrutura ficou pop, com som, luzes e câmeras, as apresentações requerem aplausos, as performances produzem gargalhadas, gritos estalar de dedos, etc. A aparência de muitos cultos atuais é semelhante à de um espetáculo que visa entreter e agradar aos consumidores (DEBORD, 2003; LLOSA, 2013), e não edificar a vida religiosa.

Isso pode ser observado em igrejas históricas, sejam em determinados arraiais católicos, bem como em esferas do Protestantismo. O interesse neste artigo é abordar efetivamente a realidade que permeia os meios protestante, evangélico e pentecostal. Em ambientes deste tipo espetáculos são montados, considerando desde a arquitetura dos templos, passando pela ornamentação, iluminação, música, coreografias, chegando aos pormenores das mensagens, orações e “atividades espirituais”, havendo em alguns arraiais orações por curas, exorcismos e testemunhos (CAMPOS, 1996).

Infelizmente, em muitas igrejas tudo vem sendo montado visando crescimento, aumento do número de membros, ou de consumidores, dependendo da visão. Por isso, uma filosofia pragmática e funcionalista vai ganhando espaço nas igrejas, tendo como objetivo agradar à clientela, atraindo-a e atingindo seus “propósitos” (BARRO, 2004).

1.1.2 A Quantificação da vida religiosa

Desde os tempos modernos que o homem vem se preocupando com a quantificação das coisas. Hoje quase tudo se tornou objeto de medição em algumas igrejas. Muito é verificado, avaliado, objetivando aumentar os números eclesiásticos: sejam membros, entradas financeiras, patrimônio, salários, congregações, atividades, etc. As boas igrejas no Século XXI são a que tem os maiores números e não as que possuem a melhor qualidade; são as que fazem mais atividades, tendo mais programas, e não a que vive efetivamente o Evangelho de Cristo com simplicidade; são as que aparecem mais nas mídias, e não as que efetivamente impactam a sociedade, sendo “sal da terra e luz do mundo” - Mt 5:13-16 (MAGALHÃES, 2018).

É lógico que a Igreja quer evangelizar o mundo e fazer discípulos. Essa é a sua missão. Isso implica em crescimento, em números, mas sem perdas para a qualidade. O crescimento da igreja precisa ser multidimensional e ao mesmo tempo “natural”, baseado em sua autopoiesis[3], ou seja, sua auto-organização promovida sob o poder do Espírito Santo. Nunca por meras estratégias, programações e estruturas humanas (SCHWARS, 2019).   

1.1.3 O Clientelismo da membresia

O mundo capitalista é o universo do clientelismo. Infelizmente, as relações em muitas instituições religiosas vêm seguindo o modelo mercadológico, sendo regidas por deveres e direitos ligados ao consumo. A membresia eclesiástica aos poucos se tornou um grupo de consumidores de produtos religiosos, ávidos para consumir e implacáveis em exigir seus direitos em relação aos produtos adquiridos e aos serviços usufruídos nas comunidades de fé. As próprias relações interpessoais se tornaram “descartáveis”, transformando o outro em objeto (BUBER, 1979) e assumindo a característica de “conexões”, e não propriamente de relações profundas e íntegras (BAUMAN, 2004) como deveriam ser, segundo o Evangelho.

A idéia de que somos fieis, irmãos, discípulos de Cristo, precisa ser regatada. O reducionismo das “ovelhas” a “clientes” é um mal extremamente nefasto, corrompendo relacionamentos que deveriam ser sadios e bem intencionados.   

1.1.4 A Estruturação em rede das instituições religiosas

Fala-se muito na atualidade de estruturação em rede e organização em pirâmide. São modelos adotados em muitas empresas com a finalidade de obter crescimento rápido e lucro imediato. Entretanto, nem sempre tais modelos de negócio são muito honestos e transparentes em seus objetivos, finalidades e prestação de contas. Provavelmente, todos devem conhecer e se lembrar de algumas empresas que, usando tais modelos, acabaram na mídia e justiça relacionadas a algum tipo de fraude ou corrupção.

Igrejas e pastores devem lidar com as ovelhas da maneira mais transparente possível, evidenciando objetivos explícitos e mesmo aqueles que não estão tão explícitos assim. O trato com as finanças deve ser realizado de forma honesta, havendo prestação de contas, para que seja evitada “a aparência do mal” (1 Ts 5:22).

1.1.5 A Secularização da linguagem eclesiástica

            A quinta característica é lingüística, ligada à comunicação. Percebe-se a cada dia a secularização da linguagem eclesiástica, o que pode ser evidência de uma mudança paradigmática e de mentalidade no meio evangélico. As mudanças linguísticas apontam para alterações mais profundas na maneira de pensar, na forma de se organizar e de estruturar a vida comunitária. Por exemplo, mudanças no linguajar como as de “ministro” para “gestor”, “missão” para “planejamento estratégico”, “pessoa” para “potencial consumidor”, “igrejas” para “mercado religioso”, trazem no bojo inúmeras mudanças teológicas, antropológicas, sociológicas, etc.

            Hoje, com a influência tanto de um viés mercadológico, quanto do político-ideológico nas comunidades de fé, coisas estranhas são ditas e praticadas, como se implicações não trouxessem para o Evangelho de Cristo. Um bom exemplo é uso da expressão “inclusão”. Muitos pastores estão mais preocupados com a “inclusão de excluídos” na vida comunitária, do que com a “conversão de pecadores” e sua inserção no Reino de Deus. As duas questões são diversas, mas em muitos casos são abordadas como se fossem idênticas. É necessário ter muito cuidado nessa hora. 

1.1.6 O Funcionalismo e o pragmatismo

Por fim, o funcionalismo e pragmatismo são temas recorrentes no mundo hodierno, quando os tempos são marcados pela ênfase na busca de finalidades (propósitos) e não no estabelecimento de princípios e axiomas para a vida. Para a filosofia funcionalista “os fins justificam os meios”, possibilidade axiomática que representa grande dificuldade para a ética cristã. Num mundo, tanto sob influência mercadológica capitalista, quanto sob influência ideológica socialista, a ética tornou-se situacional e atomista, dependendo muitas vezes das finalidades. No capitalismo, o fim é o lucro, e o mesmo deve ser alcançado usando-se de todos os meios possíveis (pessoas, igrejas, Deus, etc.), independente de serem eticamente incoerentes. O mesmo se observa no socialismo, cujo fim é a revolução e a utopia igualitarista: tudo deve ser usado para que tal estado seja alcançado (pessoas, igrejas, Deus, etc.).

A igreja cristã deve desenvolver uma visão crítica quanto a tais filosofias/ideologias, não permitindo que se entranhem à mensagem do Evangelho, distinguindo-as de maneira clara, evitando-se os desvios de finalidade (KOYZIS, 2014).   

1.2 Consequências da ingerência mercadológica sobre a religião

A influência do mercado sobre a religião produz inúmeras consequências. As marcas são evidentes e os resultados também.

1.2.1 O Mercado como o “Todo-Poderoso”

A constatação da ingerência do Mercado sobre a cultura contemporânea, a “cultura-mundo” (LIPOVETSKY & SERROY, 2011) é evidência de que ele se tornou “todo-poderoso”. Noam Chomsky (CHOMSKY, 1999) já havia percebido isso no final do século passado, ao reconhecer o poder do Mercado influenciando a economia, a política, a cultura, a moda, a ética, etc. Lypovetsky e Serroy (2011) também perceberam essa realidade mais recentemente, ao afirmarem:

A Igreja, o socialismo, o Estado republicano, a nação, a escola, as culturas de classe, mais nada disso constitui contrapesos verdadeiros ao reinado absoluto do mercado. Esses sistemas perduram, mas são cada vez mais redefinidos, reestruturados, invadidos pelas lógicas de concorrência, competição e desempenho que se impõem como a matriz, a pedra angular da organização de nosso universo social e cultural. O hipercapitalismo revela a nova onipresença e onipotência do Homo economicus, à extensão do modelo às esferas antigamente fora do domínio mercantil. (LIPOVETSKY E SERROY, 2011, p.38)

O Mercado está, portanto, se infiltrando na atual realidade e em todas as esferas, gerando ajustes e adaptações nas diversas instituições e áreas, ditando as regras, os valores, os objetivos e alimentando a ideia de que quem quer sobreviver na presente era precisa se “atualizar”, ou seja, ceder às prerrogativas e interesses mercadológicos. A religião, enquanto elemento cultural, não está fora do alcance dos poderes do Mercado. É possível constatar isso nos diversos modelos de crescimento de igreja, em várias teologias contemporâneas e na reengenharia sofrida por diversas instituições.

1.2.2 A Influência institucional e individual do mercado

O pior de tudo é que a infiltração mercadológica não acontece apenas na mentalidade institucional, mas também na mentalidade individual. Lipovetsky e Serroy (2011) observam que:

o modelo de mercado foi realmente interiorizado, rompendo o antigo tabu do dinheiro. Daí em diante, tudo é pensado em termos de rentabilidade e de desempenho, de maximização dos dividendos, de cálculos individualistas dos custos e benefícios. (LIPOVETSKY E SERROY, 2011, 38).

Tal perspectiva impregnou-se na realidade secular, mas também na religiosa. Tudo passou a girar em torno do capital, do lucro e do poder que podem proporcionar. Infelizmente, muitos “venderam sua alma” ao Mercado em busca de suas benesses. Contaminaram-se com os “manjares do rei”, abandonaram doutrinas, crenças e valores. Deixaram a busca do ser em detrimento da busca do ter (FROMM, 1986).

1.2.3 A Corrupção da espiritualidade bíblica

No mundo hipermoderno o hipercapitalismo vem conseguindo corromper a espiritualidade bíblica, sadia, bem intencionada, desprovida de interesses outros. Influenciadas pelo Mercado, algumas igrejas se mercantilizaram, se tornando “pequenas empresas e grandes negócios”.  E isso não é por acaso, mas está acontecendo como uma tendência histórica, já que se manifesta na religião, na igreja, e também na política, na educação, nas artes, enfim, na cultura em geral.

No atual contexto, a cultura em suas diversas manifestações está a serviço do Mercado. Da mesma forma se apresentam muitas religiões, em geral, e igrejas, em particular, especialmente quando as pensamos em termos culturais. O que precisa ser questionado é: o Mercado se tornou o “deus” a quem a religião serve? Será que ser bem sucedida e próspera é a missão da Igreja? Isso não seria sucumbir à tentação da relevância perante o mundo? Jesus legou um grande exemplo de rejeição à tentação da relevância ao não sujeitar-se às tentações de Satanás no deserto, que oferecia a ele suprimentos, poder e glória (Mt 4:1-11).

Em outros momentos da história a igreja experimentou situações semelhantes. Na Idade Média, por exemplo, a Igreja sucumbiu diante de interesses políticos, ao se unir ao Império Romano. Todos conhecem os desdobramentos nefastos desta união promíscua. Quando será que a cristandade contemporânea acordará para os riscos de se submeter ao controle de poderes político-econômicos, como os do Mercado? Quando a igreja se libertará da tentação de buscar a glória neste mundo?

2 O Übermensch  como “modelo pastoral” na modernidade líquida

Há uma ausência significativa de paradigmas no mundo atual, com a perda dos modelos absolutos e definitivos por causa do pensamento relativista e do “pensamento frágil” (VATTIMO, 2008). As tradições foram abandonadas e as pessoas estão sempre em busca do novo. Por isso há um grande vazio quando se pensa em referenciais pessoais e institucionais. O que falar, quando se pensa, especificamente, no modelo para lideranças cristãs?

Os novos modelos que vão surgindo, quando muito, parecem ser construídos do nada, do vazio (nihil). Algumas poucas identidades, entretanto, são desenvolvidas tendo por base ideias do final do Século XIX. O paradigma do ser humano, por exemplo, sofreu nos últimos cinquenta anos uma poderosa influência do pensamento nietzschiano (BAUMAN, 2009).

Friedrich Nietzsche foi um filósofo alemão que viveu no final do Século XIX. De origem luterana, neto e filho de pastores, estudou Teologia, mas logo a abandonou em detrimento da Filologia e da Filosofia. Seguiu o pensamento dos filósofos Schopenhauer e Schelling, seus antecessores (HALEVY, 1968). Tornou-se um dos maiores críticos do Cristianismo de então, anunciando “a morte de Deus” em obras como “O Anticristo”, onde questionou veementemente a igreja e o anúncio do Deus cristão (NIETZSCHE, 2002).

Foi Nietzsche quem criou o conceito de übermensch, ao escrever o livro “Assim falou Zaratustra”, em 1883. A expressão é complexa, mas pode significar “super-homem”, “além-homem”, ou ainda “homem superior”, ou “homem mais elevado” (NIETZSCHE, 2011). A intenção era falar do homem ideal, em sua perspectiva, aquele que se auto-afirma, se impõe, é determinado, altivo e dotado de espírito livre.

Sobre Nietzsche e seu pensamento, Bauman escreveu:

A receita ideal de Friedrich Nietzsche para uma vida feliz, plenamente humana – um ideal que ganha popularidade em nossos tempos pós-modernos ou ‘líquido-modernos’, é a imagem do Super-Homem, o grande mestre da arte da autoafirmação, capaz de se evadir ou escapar de todos os grilhões que restringem a maioria dos mortais comuns. O Super-Homem é um verdadeiro aristocrata – ‘os poderosos, os bem situados, os altivos, que pensam que eles mesmos eram bons e que suas ações eram boas’. (BAUMAN, 2009, p. 28)

Para o filósofo alemão, o “super-homem” é um indivíduo cônscio de seus direitos e por isso os reivindica; é apoiado pelo aparato social, que o legitima; é possuidor da liberdade, que o torna capaz de não ceder aos controles externos - por isso se nega a sujeitar-se a uma ideologia; além disso, luta para resgatar toda a subjetividade, para que esta produza sua autonomia (TILLICH, 1986b).

Esse homem mais elevado se encaixa no modelo da aristocracia do Século XIX, pois, por se achar superior, a nobreza compreendia que nasceu para comandar os demais. É dessa forma que Nietzsche, de maneira veemente, diferencia o “super-homem” dos “rebanhos”: enquanto aquele é um ser livre e autônomo, estes se mostram completamente dependentes, assujeitados e limitados. (TILLICH, 1986b).

O modelo antropológico nietzschiano tem servido de base não apenas para definir o padrão do homem comum, mas especialmente para moldar um perfil de liderança para o início do Século XXI. Se isso não tem sido defendido abertamente, o é de forma indireta e subliminar através da mídia, já que características como auto-afirmação, independência, altivez, autodeterminação e personalismo fazem parte dos referenciais almejados para a liderança contemporânea.

Como a igreja “não existe para além do mundo”, mas está no mundo, sofre, portanto, sua influência. Por isso, o modelo nietzscheano também enveredou nos últimos tempos pelos arraiais evangélico-pentecostais, influenciando o estilo de vida das pessoas, bem como a postura da liderança cristã, gerando uma casta de intocáveis, de “homens superiores” ou “super-homens”.

Aliás, esse assunto foi abordado na década de 1990 em livros como “Super-Crentes” (ROMEIRO, 1998) e “Evangélicos em Crise” (ROMEIRO, 1995). O tema foi, aparentemente, esquecido nas décadas posteriores, mas não foi enterrado, desenvolvendo-se “nas sombras” eclesiásticas. Dessa forma, o übermensch vem se tornando, conscientemente ou não, um modelo de liderança no meio evangélico, e suas características já se fazem notar com certa clareza. A cada dia é possível perceber novos líderes personalistas, ambiciosos, prepotentes, egocêntricos, auto-afirmadores, “superiores” surgindo no meio do povo de Deus. Essa afirmação é feita com tristeza e decepção.

Muitos desses “super-homens” desenvolveram características negativas e marcantes que os distinguem do estilo tradicional de liderança cristã. Eis algumas:

2.1 O Isolacionismo protecionista

É real e crescente o estilo de liderança marcado pelo isolamento. Muitos são os pastores que se separam das outras pessoas na tentativa de se protegerem, de se resguardarem, como fazem artistas e determinadas autoridades. Muitos se ausentam até das ovelhas e dos colegas, dando espaço para a criação do “mito” em torno de sua figura. Eles vivem numa “torre de marfim”, num lugar acima de todos os lugares (TILLICH, 1986b), o que intensifica a ideia de sua superioridade e de sua singularidade.

Assim como uma família real precisa de seu castelo, esses líderes precisam de suas mansões para se esconder. Não atendem ao telefone, sendo mediados sempre por secretários que definem quem pode ou não falar com “sua santidade”. Para agendar uma entrevista ou reunião com eles só é possível com meses de antecedência, o que os torna praticamente inacessíveis - por isso, muitas de suas ovelhas acabam procurando o atendimento e o cuidado de outros pastores, por não encontrarem lugar na agenda de seus pastores em suas igrejas.

Tal postura de distanciamento é a mesma encontrada no estrelismo global, ou nas constelações hollywoodianas. Tais líderes esquecem-se, entretanto, de que Jesus, o maior exemplo cristão e de liderança cristã, andava no meio do povo, frequentava a casa das pessoas, inclusive dos pobres, visitava, ia onde o povo estava, ao invés de ficar sentado dentro de um gabinete, ou guardado em sua casa em um condomínio 5 estrelas.

Talvez fosse interessante que lessem a obra do teólogo norte-americano John Pipper (2009), intitulada: “Irmãos, não Somos Profissionais”, onde o autor faz um apelo aos pastores para que vivam e desenvolvam ministérios em simplicidade, naturalidade e radicalidade profética. Ele afirma que os pastores estão sendo massacrados pela profissionalização do ministério pastoral e que a mentalidade do profissional não é a mentalidade do profeta, nem a mentalidade do escravo de Cristo. Ainda diz que o profissionalismo não tem nada que ver com a essência e o cerne do ministério cristão, e que, quanto mais o líder for profissional, mais morte espiritual deixará em seu rastro ministerial (PIPPER, 2009). Sem dívida, um alerta aos übermensches pós-modernos!

2.2 A Infalibilidade defectível

Uma característica estranha ao Protestantismo e à Bíblia é a ideia de infalibilidade da liderança. Durante séculos esta foi uma característica defendida pela liderança da Igreja Romana, especialmente do Papa, mas ela vem sendo abandonada pelos últimos pontífices, especialmente por Francisco I. Na contramão da história, pastores, bispos, apóstolos, “paipóstolos”, patriarcas, “demiurgos” e “semideuses“ evangélicos vêm assumindo a postura da infalibilidade. Arrogantemente apresentam a falsa idéia de que não erram, jamais. Se não o fazem com palavras, claramente, o demonstram com atitudes, gestual e ritualisticamente. Como estão blindados, guardados a sete chaves pelos seus auxiliares, e por se resguardarem nas “torres de marfim”, as pessoas não podem conhecer mais profundamente seus líderes e ter uma idéia de quem verdadeiramente são no cotidiano.

Vários líderes estão se escondendo atrás de uma imagem apresentada no púlpito ou veiculada na mídia, milimetricamente construída e forjada pelo marketing eclesiástico. Querem ser vistos como super-homens, super-crentes, super-líderes, super-pastores, mas não passam de pessoas comuns como você, sujeitas a pecados, falhas, escolhas indevidas e fracassos. Como a sociedade pós-moderna ama os simulacros (BAUDRILLARD, 1981) mais do que a realidade, tais pessoas encontram êxito em sua escalada rumo ao “sucesso” ministerial.    

2.3 A Inquestionabilidade contestável

Devido à infalibilidade, se desenvolve também outra característica: a inquestionabilidade. Há líderes que não suportam ser questionados ou cobrados. Acham-se “sobre-humanos”, “perfeitos” e não aceitam críticas. Sua palavra e seus planos não podem ser colocados em xeque, nem mesmo diante da Bíblia. O interessante é que muitos deles constantemente mudam de opinião, de visão, trocam os planos, as estratégias e terminam por desdizer o que disseram anteriormente. A consequência dessa característica é que as pessoas que criticam tais líderes vão sendo banidas, execradas e defenestradas das comunidades de fé. Isso pode acontecer porque, simplesmente, alguém perguntou a base bíblica de um ensino, ou de um novo direcionamento institucional.

Em determinadas igrejas já não há espaço para questionamentos, para o livre pensamento, nem para se tirar dúvidas. O que o líder diz tem peso de “revelação” dada por Deus. E ai daquele que se levanta para por em dúvida “deus”! O espírito reformado do “livre sacerdócio do crente”, que ensina que já não há sacerdotes, de que cada crente tem livre acesso a Deus em Cristo Jesus (BATTENSON, 1986), vem se perdendo há muito.

2.4 O Visionarismo devaneador

Outra característica desse tipo de liderança é o visionarismo. É inadmissível pensar num líder sem visão, que não saiba para onde está indo e conduzindo o povo de Deus. Mas, é ingenuidade acreditar que Deus só fala aos pastores, ou através dos pastores. Na Bíblia Deus falou até através de um jumento (Nm 22 e 23). Acreditar que Deus só fala com um tipo de pessoa é jogar na lata do lixo importantes passagens bíblicas, como 2 Co 3:6 e 1 Pe 4:10,11, que afirmam que Deus concede dons e ministérios diferentes para que seus ministros (todos os crentes) por exercer seus ministérios eficientemente.

Mas há líderes que, infelizmente, agem como se só eles conhecessem Deus e a Bíblia, como se apenas eles pudessem falar com Deus e ouvir a sua voz. Pensar desse modo é retornar ao sacerdotalismo vétero-testamentário, pré-reformado e anti-Bíblico. Um grande retrocesso.

2.5 A Filocracia luciferiana

Uma das principais tendências da liderança contemporânea é a filocracia (φιλοκρατία), onde φιλiα (filia) quer dizer amor, amizade, e κρατos (kratos) refere-se ao poder, apresentando tal expressão a idéia de “amor ao poder” (BAILLY, 1950).

Quando alguém desenvolve esse sentimento e ele passa a ter lugar especial em suas motivações, o ministério exercido se torna um “meio” para alcançar outro “fim”, que é o poder! Muitas pessoas, entre elas alguns ministros, são ávidas por poder. Isso é inquestionável. Lidar com o poder não é tarefa fácil, pois o mesmo é atraente, pode trazer inúmeros privilégios pessoais, gerando certo sentimento de superioridade. Se a pessoa não está atenta a esses fatores e começa a sentir prazer com os benefícios, pode cair numa grande cilada. Em pouco tempo poderá estar manifestando atitudes arbitrárias, autoritárias e manipuladoras.

Um famoso teólogo alemão do século passado, falando sobre a relação entre poder, amor e justiça, afirma que é preciso buscar o poder de amar e não amar o poder (TILLICH, 2004). O amor exasperado ao poder e por suas benesses é destruidor e tem sido o motivo de queda e reprovação de muitos líderes cristãos nesses tempos hipermodernos.

2.6 A Ganância nada generosa

O amor ao poder anda pari passu com a ganância. A cobiça financeira pode ser uma das grandes tentações ministeriais. É bíblico que o trabalhador seja digno de seu salário e que o obreiro deva receber remuneração condigna para fazer a obra de Deus sem gemer (I Tm 5:8). O que é estranho, infelizmente, é a tendência de existirem pastores ricos, que acumularam riquezas através do ministério, ou de atividades ligadas ao ministério, muitos dos quais usam o poder econômico para se impor e se auto-afirmarem sobre os demais líderes e irmãos cristãos.

Alguns desses líderes tentam justificar o estilo de vida nababesco que possuem através da Bíblia, respaldados pela Teologia da Prosperidade! Batem no peito e afirmam serem “filhos do rei”! O apóstolo Paulo, entretanto, orientando o pastor Timóteo, afirma que “... o amor ao dinheiro é raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram a si mesmas com muitos sofrimentos” (1 Tm 6:10). Certamente, tal texto foi apagado da Bíblia de famosos pregadores!

Nos últimos anos a mídia tem feito questão de propagar certa competição entre “grandes” pastores evangélicos (CARDOSO, 2013; GOIS, 2020), ao fazer comentários sobre seus relógios caros, carros caríssimos, mansões e “jatinhos” milionários. Parece haver uma troca “em cascata” por novos bens sempre que um dos “notáveis” aparece com algo novo. “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”, como dizia o sábio Salomão (Ec 12:8)!

2.7 A Prepotência autocrática

Poder e dinheiro podem produzir prepotência e sentimento de superioridade no coração de quem os possui. Isso acontece quando se valoriza o “ter” em detrimento do “ser”. Como na sociedade Ocidental, que é capitalista, essa é uma de suas ênfases, tal comportamento é reproduzido em larga escala, afetando inclusive algumas lideranças religiosas.

Muitos se esqueceram das diversas exortações bíblicas quanto ao cuidado que é preciso ter com as riquezas, como dito acima! Por isso focam no acúmulo de bens como se eles pudessem transcender a realidade material e os usam como elemento de empoderamento e de manifestação de superioridade sobre os demais. Diante dessa conjuntura, os notáveis sentem que são melhores, mais crentes, mais santos, melhores pastores... Alguns se sentem quase divinos.

Os obreiros que realizam seu trabalho focados no vil metal, preocupados com os aumentos de salário, com as reposições e com o recebimento de compensações ligadas ao crescimento numérico e financeiro das igrejas estão entre esses. Infelizmente o mercenarismo vai ganhando espaço e tem feito escola!

2.8 O Personalismo narcisista

Por fim, mas sem esgotar o assunto, a presença do personalismo é notória no métier pastoral. Os nomes de pastores e visões ministeriais viraram verdadeiras grifes na atualidade, possuindo mais visibilidade do que o Evangelho, Cristo ou a Igreja juntos. A busca de relevância, notoriedade e o desejo de serem reconhecidos pelos outros, num mundo vazio e sem significação, tem feito com que lideranças queiram ver seus nomes em letras garrafais iluminadas, brilhantes e em destaque. Assim, o Evangelho vai perdendo sua essência e se identificando com a igreja “A” ou “B”, ou com o pastor “C” ou “D”, esvaziando-se da identidade verdadeiramente cristã.

No já citado livro A Arte da Vida, Zygmunt Bauman (2009) afirma existirem dois modelos humanos básicos e duas formas de viver a vida: para si mesmo e para o outro. O sociólogo polonês apresenta Jesus Cristo como referencial de quem vive para os outros e apresenta o pensamento nietzschiano, em especial o übermensche, como modelo de quem vive para si, centrado no individual, vivendo egoisticamente. Conclui sua obra afirmando que não há verdadeira felicidade em viver a vida egoisticamente (BAUMAN, 2009).

Da mesma forma, pode-se dizer que, quando se pensa no exercício ministerial não é possível imaginar o übermensch como paradigma adequado para aquele que dedica a vida a Deus e ao próximo. O ministério pressupõe, no mínimo, que o seu candidato esteja disposto a negar-se a si mesmo (Mt 16:24), ao invés de se auto-afirmar. Como Cristo disse, “se o grão de trigo, caindo na terra não morrer, fica só, mas se morrer produz muito fruto” (Jo 12:24).

Nesse sentido, reconhecemos que um ministério sadio, relevante e realmente comprometido com o Evangelho, não pode ser desenvolvido tendo o übermensch como modelo. Como pastorear e conduzir um rebanho afastando-se dele, enclausurando-se, escondendo-se? A Bíblia diz que a luz deve estar no velador, de onde ilumina a todos (Mt 5:15). Como ser exemplo para os outros, se colocando num patamar superior, inalcançável, perfeito? O próprio apóstolo Paulo julga não ter alcançado a perfeição, mas afirma seguir para o alvo (Fp 3:13,14). Para ser exemplo é necessário muitas vezes “descer”, mais do que “subir”: Jesus foi exemplo disso, como atesta Paulo aos filipenses (Fp 2:5-11). Quem, dentre os homens, foi ou é irrepreensível, além de Cristo? A Bíblia afirma que todos pecaram (Rm 3:23). Como guiar as pessoas e não manter um diálogo aberto com elas, dispondo-se a responder suas questões e dúvidas? Todos devem estar prontos em apresentar a razão de sua esperança (I Pe 3:15). Por que voltar ao sacerdotalismo, se o véu do templo já foi rasgado? Hoje existe apenas um sumo-sacerdote: Jesus Cristo (Mt 27:21; Hb 5:6). Como as pessoas se sentirão amadas, se o foco dos líderes é o poder e o dinheiro, e não o serviço ao próximo e a Deus? Jesus veio servir e deve-se seguir seu exemplo (Cl 3:4; Gl 5:13). Como cuidar de pessoas se auto-afirmando e sendo prepotente, valorizando mais o ter do que o ser? A orientação bíblica é de não se considerar superior a ninguém e não fazer acepção de pessoas (Mt:23:12; Tg 2:1-9). Como anunciar o Evangelho se colocando acima do Evangelho? A Bíblia ensina a humildade para todos, inclusive para os líderes: “que Ele cresça e eu diminua” (Jo 3:13).

A Bíblia continua sendo regra de fé e prática. Nela há orientações ministeriais seguras. Contextualizar, adaptar e seguir modelos ministeriais fundamentados em “filosofias”, ideologias e modismos contemporâneos é um risco perigoso. Formar uma nova geração de ministros-empresários, “bem sucedidos”, senhores de si, prepotentes e gananciosos é fomentar a derrocada da igreja cristã e seu desvio de finalidade. Que ministros e futuros pastores não sejam enganados. Que a ganância e o desejo de ser relevante não destruam os ministérios!

3 O Mal-estar pastoral na hipermodernidade

Se espertalhões, empresários e profissionais da religião têm usado indevidamente a religião e se aproveitado da boa fé da população, como disse Lutero nas 95 Teses, se ocupando dos bens dos homens, ao invés de cuidar dos homens de bem (BETTENSON, 2020), por outro lado, nem tudo são flores para quem milita na área religiosa.

 O novo momento histórico tem produzido radicalizações, instabilidade, desnorteamento, perda de referenciais, e com eles, vem estabelecendo certo mal-estar pessoal e social. Independentemente do conceito utilizado sobre o mundo contemporâneo, é inegável a existência de alterações na Modernidade, promovendo uma estrutura globalizada e uma desorientação generalizada que impacta a todos. Acredita-se que essa desorientação seja gerada pela depreciação dos valores superiores, pela ruína do fundamento metafísico do saber, da lei e do poder, e pela desintegração dos pontos de referência mais básicos da vida humana (LIPOVETSKY E SERROY, 2011). Os autores franceses afirmam que...

Num mundo carente de orientação e influenciado pelo hiperindividualismo a sociedade lança sobre os indivíduos as glórias do sucesso ou a culpa pelos fracassos, algo anteriormente direcionado a um grupo ou classe social. O risco do fracasso, a necessidade de capacitação constante, a concorrência e o medo da avaliação permanente, produzem angústia, baixa estima e a autodesvalorização do trabalhador contemporâneo, especialmente daquele que experimenta alguma situação de fracasso e humilhação. Por isso, pode-se dizer que a segurança (estabilidade) no trabalho se tornou “artigo de luxo”, algo praticamente inacessível. Essa instabilidade profissional produzida no mundo hipermoderno desestabiliza as personalidades e as identidades, desequilibra a vida mental e moral dos indivíduos tornados inseguros e que já não dispõem do apoio dos antigos quadros da vida coletiva. No sistema econômico de curto prazo, em que os trabalhadores são ‘descartáveis’, um grande número de pessoas, inclusive da classe média, vive uma experiência cruel de fracasso pessoal no isolamento e na vergonha de si mesmo, que dão origem à amargura, ao desencorajamento, à depressão. (LIPOVETSKY E SERROY, 2011, 37).

Dessa forma, a instabilidade profissional vem trazendo transtornos, pois pode produzir profundo mal-estar patológico, que se manifesta através de problemas como síndrome do pânico, depressão, ansiedade (CURY, 2014), e, mais recentemente, a Síndrome de Burnout (SELIGMANN-SILVA, 2013). Profissionais de alta performance, de grande responsabilidade, que possuem metas cada vez maiores e que lidam com pessoas e seus problemas são os alvos principais desse novo quadro que se estabelece. Nesse contexto estão inseridos diversos profissionais, entre eles, os ministros religiosos em geral, e os pastores, em particular.

3.1 Hipermodernidade, profissionalização e saúde pastoral

Ao contrário do que muitos pensam, a vida ministerial não é só glamour! Na atualidade, os pastores são colocados diante de situações cada vez mais complexas, debaixo de responsabilidades cada dia maiores, de exigências às vezes sobre-humanas. Muitos ministros têm que vencer metas, se atualizar constantemente, inovar continuamente, criar sempre, administrar com competência, tudo sem perder o controle da situação. Isso, além do que já era exigido anteriormente: ser homem espiritual, íntegro, moderado, sábio, que tem família ajustada e vida secular ilibada. Precisa “ser”, “fazer” e “ter” todas essas características, além de lidar na grande maioria das vezes com pessoas difíceis, nem sempre ajustadas, íntegras, ou leais, o que torna o ambiente ministerial muitas vezes inóspito (PEREIRA, 2013).

3.1.1 O Mal-estar dos pastores no ministério

Por isso, muitos são os ministros que experimentam um profundo mal-estar. Vários se encontram machucados e feridos. Estão enfrentando os desafios, as lutas e as crises ministeriais à base de oração, leitura bíblica, mas também de medicamentos “controlados” e de terapias. Alguns encurtaram a carreira ministerial abruptamente, com enfermidades graves que os deixaram incapacitados; outros o fizeram através da morte prematura. Decepção, sofrimento, amargura e deserção não são palavras incomuns aos ministros contemporâneos.

3.1.2 O Ministério e o isolamento

Muitos ministros vão enfrentando suas crises, na maioria das vezes, no mais completo isolamento, na mais profunda solitude: uma solidão esquisita que acontece em meio a dezenas ou centenas de pessoas ao seu redor. Um isolamento que é gerado porque os outros pensam que pastor é um super-homem e que seria fraqueza adoecer ou ter um esgotamento; ou então, porque o pastor mesmo acha isso, culpando-se pela “falta de fé”, ou pior, acreditando que Deus o teria abandonado à própria sorte, sendo um mau “chefe”, um Senhor displicente.

Alguns líderes se isolam, também, por não confiarem nos outros. Há quem possua dificuldades pessoais em se relacionar e confiar, talvez por causa de alguma experiência frustrante no passado. Outros não confiam porque convivem com pessoas difíceis, desleais, competitivas, desagregadoras e realmente indignas de confiança. Tais pessoas podem ser os membros das comunidades de fé, ou, infelizmente, os colegas de ministério, que nem sempre estão dispostos a desenvolver relacionamentos sadios e íntegros.  Não são raros os casos de perseguição, difamação e destruição da honra de ministros pelos próprios colegas. Por isso, pastores e demais ministros podem enfrentar muitas lutas, terem muitos dissabores e ficarem, como resultado, esgotados e enfermos.

Necessário é se lembrar, entretanto, que este não é um problema somente dos pastores, pois os ministros fazem parte de uma conjuntura muito maior. Tal mal-estar não é pessoal ou apenas ligado a uma profissão. Ele é estrutural e global, atingindo ministros de várias instituições, bem como profissionais de várias áreas diferentes. O mesmo esgotamento experimentado por pastores atinge professores, bancários, policiais, etc. (JBEILI, s/d)

3.1.3 O Ministério e a instabilidade “profissional”                               

Na verdade, o mundo mudou, as cobranças aumentaram e a instabilidade profissional se agigantou! A realidade eclesiástica já não é a mesma. Para muitos, a “graça” foi trocada por “direitos”, a convivência fraterna por clientelismo, o serviço ministerial por performance “artística” ou empresarial. Muitos ministros estão adoecendo por causa da sobrecarga, devido à responsabilidade individual de ter que prever o imprevisível, controlar o incontrolável e agradar aqueles que nunca se satisfazem. Não que essa realidade seja positiva, mas infelizmente é o que vem acontecendo, porque a cultura hodierna impõe tal conjuntura: um mundo marcado pela mais radical instabilidade.

3.2 O Enfrentamento da situação

Para enfrentar essa realidade desalentadora, é importante que os “ministros hipermodernos” desenvolvam pelo menos três atitudes para reagir a essa situação. São elas a capacitação continuada, a resiliência, e a confiança incondicional em Deus.

3.2.1 A Necessidade de capacitação continuada

O mundo muda o tempo todo. Especialmente a realidade de mundo atual está em constante processo de mutação. O desenvolvimento da educação, acompanhado pela comunicação de massa tem gerado rápidas transformações na sociedade. Isso aponta para o fato de que a cobrança pela atualização é continua, mas também indica que a possibilidade de acompanhamento das alterações paradigmáticas é possível.

Por isso se fala tanto de educação continuada no mundo hodierno. O processo educacional deve ser contínuo para que as pessoas estejam sempre atualizadas e os profissionais capacitados. No caso do pastor, ele deve ser aberto às continuas capacitações e atualizações ministeriais para que esteja constantemente equipado a fim de atender os novos desafios apresentados pela igreja e pelo mundo. Não dá para acompanhar as mudanças com uma formação de 10, 20, 30 anos atrás. É preciso fazer novos cursos e pós-graduações. Estudar sempre é um desafio atual, mesmo que não seja através de cursos formais, mas pelo uso contínuo da leitura, da assistência a palestras, mini-cursos, etc. Aliás, a educação teológica e ministerial no Século XXI precisa capacitar para a auto-aprendizagem e para a pesquisa (MAGALHÃES, 2016).

3.2.2 A Importância da resiliência

Resiliência é a capacidade de suportar pressões e se adaptar às novas exigências que a realidade impõe se reinventado sempre. É uma idéia que veio das “ciências duras” e acabou encontrando espaço nas Ciências Humanas. Inúmeras nuances do conceito de resiliência podem ser observadas na literatura contemporânea:

Ralha-Simões (2001), a define como uma especificidade estrutural do desenvolvimento psicológico, traduzindo a resiliência como a capacidade que determinadas pessoas, grupos ou instituições possuem de evitar, enfrentar ou mesmo ultrapassar os efeitos desestruturantes esperados diante de situações dadas à exposição a certas experiências desconstrutivas. Nessa concepção, ela é vista como elemento estruturante diante das possibilidades desagregadoras e desustruturantes de fases da vida e em determinados contextos.

Placco (2001) conceitua resiliência como a capacidade que a pessoa tem de responder de forma consistente aos desafios e dificuldades existenciais, de reagir com flexibilidade e capacidade de recuperação diante desses desafios e circunstâncias desfavoráveis, apresentando uma atitude otimista, positiva, perseverante e mantendo um equilíbrio dinâmico no decorrer e após à adversidade experimentada. Aqui resiliência está ligada à postura otimista, positiva, perseverante e dinâmica de lidar com os problemas.

Para Silva (2003) a resiliência refere-se à capacidade das pessoas de enfrentar e responder de forma positiva às experiências que trazem alto potencial de risco para a saúde e para o desenvolvimento do indivíduo. Nessa perspectiva, ela é vista como resposta aos desafios e riscos que a vida impõe.

Para Junqueira e Deslandes (2003) a resiliência é observada como a capacidade individual de, em determinadas situações e de acordo com as circunstâncias, lidar com as crises não se deixando sucumbir a ela, alertando para a capacidade de relativizar, em função do indivíduo e do contexto, o aspecto de "superação" de eventos muito estressores. Aqui ela já é percebida como reação humana às adversidades e à auto-superação do estresse destrutivo.

Portanto, a partir dos conceitos vistos, e vivendo num mundo tão instável e desafiador, o pastor necessita lidar com frustrações e traumas decorrentes das lutas da vida e de situações ligados especificamente ao exercício profissional. Ele precisa suportar pressões, lidar com frustrações, redirecionar planos, repensar estratégias, readaptando-se às novas exigências, sem perder-se no processo. Quem não desenvolve essa característica, a resiliência, dificilmente consegue desenvolver um ministério que deixa frutos que permanecem (SELIGMANN-SILVA, 2013).

Entretanto, ser resiliente não significa abrir mão de ideias e valores considerados fundamentais para si mesmo, nem se deixar sucumbir pelo “sistema”, fazendo malabarismos para permanecer no cargo e fazer parte do “jogo”. É preciso ter consciências, valores e coerência.

3.2.3 O Fundamento da confiança incondicional em Deus

Quanto à fé, a confiança incondicional em Deus (TILLICH, 1985), ela é fundamental para se enfrentar a instabilidade e as incertezas da vida e do ministério. Confiar somente em si mesmo, em seu potencial, não é suficiente para obter paz e segurança, a fim de vencer a ansiedade e os temores que habitam o coração do homem. Confiar nas instituições e nas pessoas muito menos. Somente a certeza de que Deus é quem guia, sustenta e ampara os ministros, porque somente Ele é o Senhor, pode garantir estabilidade emocional e um ministério abençoado, estável e frutífero.

Infelizmente, muitos envolvidos nas circunstâncias ministeriais têm colocado sua confiança incondicional nas instituições, como se elas pudessem garantir estabilidade. Outros desenvolvem uma postura política, criando grupos e estabelecendo sua confiança na influência de gente empoderada que lhe dê apoio, sustentação e amparo na adversidade. Outros ainda confiam em estratégias e modelos que vão sendo alterados constantemente, com a finalidade de garantir estabilidade, através de programas diversos, eventos diferentes e entretenimento continuamente inovador. Mas, nada disso traz segurança ministerial. Só Deus pode efetivamente trazer estabilidade ao ministro no exercício do ministério, seja na hora de iniciá-lo, seja durante seu desenvolvimento ou mesmo no momento de encerrá-lo.

Conhecedores de suas limitações pessoais, cientes de que os tempos são maus, mas também dotados de confiança incondicional em Deus, do desejo de continua capacitação e da capacidade de resiliência, que os pastores possam diariamente se fortalecer e se reinventar para desempenhar ministérios abençoados, íntegros, eficazes e agradáveis a Deus.

Considerações finais

Os tempos são complexos e difíceis. Igrejas, líderes em geral e pastores devem ser treinados a lidar com a influência mercadológica da hipermodernidade sobre a esfera religiosa. Não podem rejeitá-la completamente, muito menos sucumbir diante dos seus ditames. Terão que exercer uma relação crítica constante, “examinado tudo e retendo o que é bom” (I Ts 5:21).

O mesmo deve ser feito com as ideologias mais comuns que vigoram na atualidade, seja o liberal-capitalismo, ou o comuno-socialismo, vendo-as como filosofias humanas, sujeitas ao contexto histórico, e, portanto, carecendo de análise crítica constante e consistente, aproveitando o que é coerente e desfazendo-se do “lixo”.

É preciso repensar a visão de liderança personalista, inquestionável, prepotente e gananciosa comum nesse início de século. Jesus precisa sempre ser visto como o paradigma para a liderança cristã. O líder é antes de tudo um “servidor” e não um “chefe”. Como disse Jesus: “Não será assim entre vocês. Pelo contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo, e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo” (Mt 20:26,27).

Quanto ao mal-estar ministerial, muito líderes precisam de socorro, pois estão em sofrimento, sozinhos e adoecidos. Precisam ser capacitados para enfrentar essa era de instabilidade. Necessitam de apoio para desenvolver a resiliência necessária para não se perderem na caminhada ministerial. É primordial terem fé incondicional em Deus, desenvolvendo um sentimento de dependência contínua do Senhor, a fim de cumprirem cabalmente o seu chamado e poderem dizer como o Apóstolo Paulo ao fim da vida: “Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé” (2 Tm 4:7).

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[1] Membro da Fraternidad Teologica Latinoamericana. Graduado em Teologia pelo STBNB/FTSA, Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior pelo ITOP, Pós-Graduado em Telemática pelo IFTO, Mestre em Ciências do Ambiente, pelo PPGCIAMB-UFT, Palmas - TO. Professor de Teologia no STBT, SETA e STBG, em Palmas – TO.

[2] Hopi Hari é um parque muito conhecido na Cidade de São Paulo, sendo ao mesmo tempo, local de entretenimento e empresa com fins lucrativos.

[3] Autopoiesis é um princípio ligado à Teoria dos Sistemas, para o qual todo sistema possui a capacidade de se auto-organizar, de se auto-criar, se adaptando às necessidades e mantendo-se vivo e em crescimento (MATURANA; VARELLA, 1979 ).