Hipermodernidade
e Religião Cristã: reflexões sobre a igreja e o ministério pastoral em tempos
de consumismo, perda de referenciais e instabilidade
Diogo Souza Magalhães[1]
Introdução
Segundo
Lipovetsky e Serroy (2011), estamos passando pelo que chamam de Hipermodernidade.
Para tais autores, a Hipermodernidade seria uma nova fase da Modernidade
marcada por um processo de intensificação e radicalização das tendências
modernistas experimentadas até então.
Os
conceitos de Hipermodernidade (LIPOVETSKY E SERROY, 2011), de Pós-Modernidade
(LYOTARD, 1986) e de Modernidade Líquida (BAUMAN, 1998) são semelhantes, mas
com ênfases diferentes. O primeiro apresenta a ideia de intensificação do
processo de mudanças modernas, o segundo destaca a nova caracterização da Modernidade
e o terceiro identifica os papéis da fluidez e da indefinição dos tempos
modernos, respectivamente.
Na
visão de Lipovetsky e Serroy (2011), a Hipermodernidade é caracterizada pelo
hipercaptalismo, pela hipertecnicização, pelo hiperindividualismo e pelo
hiperconsumo. Segundo os autores, o hipercapitalismo é a ingerência do Sistema
Capitalista em todas as esferas da vida humana, sejam públicas ou privadas,
teóricas ou práticas, interiores ou exteriores, pessoais ou coletivas, sagradas
ou profanas. A hipertecnicização seria a dependência da humanidade em relação à
técnica, às máquinas e à razão instrumental, tornando as pessoas sujeitas e
dependentes das coisas, sejam computadores, celulares, web, aparelhos
domésticos, máquinas industriais, etc.. O hiperindividualismo, por sua vez, seria
a ênfase exagerada do indivíduo sobre o coletivo, reforçando a privatização da
vida coletiva, dificultando os relacionamentos interpessoais e sociais. Sobre
esse assunto, Bauman (2004) afirma que o homem atual prefere as “conexões” às
“relações”, ou seja, as experiências relacionais são fluida, frágeis e superficiais,
ao invés de profundas e duradouras. Por fim, o hiperconsumo, que seria a conjuntura
onde tudo é reduzido à relação de consumo: seja a política, a religião, a cultura,
o sexo, etc. (LIPOVETSKY E SERROY, 2011; BAUMAN, 2008).
Na
estrutura de mundo apresentada pelos sociólogos franceses a cultura está
profundamente marcada pelo mercantilismo, tornando-se mais um objeto de
consumo, entre tantos outros (LIPOVETSKY E SERROY, 2011). A finalidade da
cultura para o mundo atual não seria, como outrora, a difusão da ética, da estética,
a formação técnico-cultural, ou a compreensão significativa da realidade, mas focaria
essencialmente nos objetivos econômicos. Todas as esferas culturais estariam
debaixo das leis mercantis, servindo aos interesses do Mercado, inclusive a
esfera religiosa.
Sendo
assim, o maior objetivo da cultura nos tempos hipermodernos seria o lucro, o
que afetaria, também às esferas religiosa e eclesiástica, mercantilizando-as.
Por isso, fala-se tanto sobre a supremacia do Mercado sobre a Religião,
especialmente sobre a vida das igrejas e dos líderes religiosos - ditando propósitos,
valores, missão, estrutura organizacional das instituições e performance dos atores religiosos,
gerando em ambos profundas mudanças.
Esse
artigo tem como objetivo, portanto, apresentar a influência do hipercapitalismo
sobre a vida das igrejas, sobre a performance
dos ministro religiosos e perceber o mal-estar experimentado na relação entre líderes
eclesiásticos e instituições religiosas, apontando para os desgastes de ambos e
para a resignifcação de seus símbolos e de suas práticas.
1 Hipercapitalismo e mercantilização eclesiástica numa
abordagem lipovetskyana
Como
apresentado acima, a influência do Mercado sobre a Religião é tremenda nesses
tempos, ditando tendências, modelos, modismos, objetivos, etc. (LIPOVETSKY;
SERROY, 2011). O estilo de vida atual, baseado no consumo, é regra em
praticamente todo o mundo (BAUMAN, 2008), afetando as diversas áreas da vida
pessoal e social. A forma de trabalhar, a maneira de estudar, o jeito de
consumir, o modo de se comunicar, o costume de se informar, a maneira de
adorar, tudo está envolto pela atmosfera do consumo. Por isso, números, quantidade,
qualidade, avaliações, experiência do usuário (UX), planejamento estratégico, marketing,
definição de visão e de missão, entre outras questões, se tornaram comuns na
vida eclesiástica de instituições que têm como foco obter consumidores, e, por
fim, o lucro. Como bem afirmou Pondé (2014), a religião se tornou nos últimos
tempos uma experiência superficial, voltada para o entretenimento e baseada no
consumo, algo muito parecido com a experiência de frequentar o Hopi Hari[2].
1.1
A influência poderosa do Mercado sobre a Religião no mundo atual
Muito
pode ser abordado sobre tal influência do Mercado sobre a Religião, sobre as
instituições religiosas e sobre os religiosos. A intenção nesse artigo,
entretanto, é destacar as seis características abaixo, por serem bastante
evidentes no métier religioso.
1.1.1 A Espetacularização do culto
A
religião mercantilizada é marcada pelos espetáculos nos cultos (COX, 1974).
Muitas liturgias atuais estão assumindo características de verdadeira panacéia.
Pastores se tornaram showmen, o ambiente
se tornou lúdico, a estrutura ficou pop,
com som, luzes e câmeras, as apresentações requerem aplausos, as performances produzem gargalhadas,
gritos estalar de dedos, etc. A aparência de muitos cultos atuais é semelhante
à de um espetáculo que visa entreter e agradar aos consumidores (DEBORD, 2003;
LLOSA, 2013), e não edificar a vida religiosa.
Isso
pode ser observado em igrejas históricas, sejam em determinados arraiais
católicos, bem como em esferas do Protestantismo. O interesse neste artigo é
abordar efetivamente a realidade que permeia os meios protestante, evangélico e
pentecostal. Em ambientes deste tipo espetáculos são montados, considerando
desde a arquitetura dos templos, passando pela ornamentação, iluminação,
música, coreografias, chegando aos pormenores das mensagens, orações e
“atividades espirituais”, havendo em alguns arraiais orações por curas,
exorcismos e testemunhos (CAMPOS, 1996).
Infelizmente,
em muitas igrejas tudo vem sendo montado visando crescimento, aumento do número
de membros, ou de consumidores, dependendo da visão. Por isso, uma filosofia pragmática
e funcionalista vai ganhando espaço nas igrejas, tendo como objetivo agradar à
clientela, atraindo-a e atingindo seus “propósitos” (BARRO, 2004).
1.1.2 A Quantificação da vida religiosa
Desde
os tempos modernos que o homem vem se preocupando com a quantificação das
coisas. Hoje quase tudo se tornou objeto de medição em algumas igrejas. Muito é
verificado, avaliado, objetivando aumentar os números eclesiásticos: sejam
membros, entradas financeiras, patrimônio, salários, congregações, atividades,
etc. As boas igrejas no Século XXI são a que tem os maiores números e não as que
possuem a melhor qualidade; são as que fazem mais atividades, tendo mais
programas, e não a que vive efetivamente o Evangelho de Cristo com simplicidade;
são as que aparecem mais nas mídias, e não as que efetivamente impactam a
sociedade, sendo “sal da terra e luz do mundo” - Mt 5:13-16 (MAGALHÃES, 2018).
É
lógico que a Igreja quer evangelizar o mundo e fazer discípulos. Essa é a sua
missão. Isso implica em crescimento, em números, mas sem perdas para a
qualidade. O crescimento da igreja precisa ser multidimensional e ao mesmo
tempo “natural”, baseado em sua autopoiesis[3],
ou seja, sua auto-organização promovida sob o poder do Espírito Santo. Nunca
por meras estratégias, programações e estruturas humanas (SCHWARS, 2019).
1.1.3 O Clientelismo da membresia
O
mundo capitalista é o universo do clientelismo. Infelizmente, as relações em
muitas instituições religiosas vêm seguindo o modelo mercadológico, sendo
regidas por deveres e direitos ligados ao consumo. A membresia eclesiástica aos
poucos se tornou um grupo de consumidores de produtos religiosos, ávidos para
consumir e implacáveis em exigir seus direitos em relação aos produtos
adquiridos e aos serviços usufruídos nas comunidades de fé. As próprias
relações interpessoais se tornaram “descartáveis”, transformando o outro em
objeto (BUBER, 1979) e assumindo a característica de “conexões”, e não
propriamente de relações profundas e íntegras (BAUMAN, 2004) como deveriam ser,
segundo o Evangelho.
A
idéia de que somos fieis, irmãos, discípulos de Cristo, precisa ser regatada. O
reducionismo das “ovelhas” a “clientes” é um mal extremamente nefasto,
corrompendo relacionamentos que deveriam ser sadios e bem intencionados.
1.1.4 A Estruturação em rede das
instituições religiosas
Fala-se
muito na atualidade de estruturação em rede e organização em pirâmide. São
modelos adotados em muitas empresas com a finalidade de obter crescimento
rápido e lucro imediato. Entretanto, nem sempre tais modelos de negócio são
muito honestos e transparentes em seus objetivos, finalidades e prestação de
contas. Provavelmente, todos devem conhecer e se lembrar de algumas empresas que,
usando tais modelos, acabaram na mídia e justiça relacionadas a algum tipo de
fraude ou corrupção.
Igrejas
e pastores devem lidar com as ovelhas da maneira mais transparente possível,
evidenciando objetivos explícitos e mesmo aqueles que não estão tão explícitos
assim. O trato com as finanças deve ser realizado de forma honesta, havendo
prestação de contas, para que seja evitada “a aparência do mal” (1 Ts 5:22).
1.1.5 A Secularização da linguagem
eclesiástica
A
quinta característica é lingüística, ligada à comunicação. Percebe-se a cada
dia a secularização da linguagem eclesiástica, o que pode ser evidência de uma
mudança paradigmática e de mentalidade no meio evangélico. As mudanças
linguísticas apontam para alterações mais profundas na maneira de pensar, na
forma de se organizar e de estruturar a vida comunitária. Por exemplo, mudanças
no linguajar como as de “ministro” para “gestor”, “missão” para “planejamento
estratégico”, “pessoa” para “potencial consumidor”, “igrejas” para “mercado religioso”,
trazem no bojo inúmeras mudanças teológicas, antropológicas, sociológicas, etc.
Hoje, com a influência tanto de um
viés mercadológico, quanto do político-ideológico nas comunidades de fé, coisas
estranhas são ditas e praticadas, como se implicações não trouxessem para o
Evangelho de Cristo. Um bom exemplo é uso da expressão “inclusão”. Muitos
pastores estão mais preocupados com a “inclusão de excluídos” na vida
comunitária, do que com a “conversão de pecadores” e sua inserção no Reino de
Deus. As duas questões são diversas, mas em muitos casos são abordadas como se
fossem idênticas. É necessário ter muito cuidado nessa hora.
1.1.6 O Funcionalismo e o pragmatismo
Por
fim, o funcionalismo e pragmatismo são temas recorrentes no mundo hodierno, quando
os tempos são marcados pela ênfase na busca de finalidades (propósitos) e não
no estabelecimento de princípios e axiomas para a vida. Para a filosofia funcionalista
“os fins justificam os meios”, possibilidade axiomática que representa grande
dificuldade para a ética cristã. Num mundo, tanto sob influência mercadológica capitalista,
quanto sob influência ideológica socialista, a ética tornou-se situacional e
atomista, dependendo muitas vezes das finalidades. No capitalismo, o fim é o
lucro, e o mesmo deve ser alcançado usando-se de todos os meios possíveis
(pessoas, igrejas, Deus, etc.), independente de serem eticamente incoerentes. O
mesmo se observa no socialismo, cujo fim é a revolução e a utopia
igualitarista: tudo deve ser usado para que tal estado seja alcançado (pessoas,
igrejas, Deus, etc.).
A
igreja cristã deve desenvolver uma visão crítica quanto a tais filosofias/ideologias,
não permitindo que se entranhem à mensagem do Evangelho, distinguindo-as de
maneira clara, evitando-se os desvios de finalidade (KOYZIS, 2014).
1.2
Consequências da ingerência mercadológica sobre a religião
A
influência do mercado sobre a religião produz inúmeras consequências. As marcas
são evidentes e os resultados também.
1.2.1 O Mercado como o “Todo-Poderoso”
A
constatação da ingerência do Mercado sobre a cultura contemporânea, a “cultura-mundo”
(LIPOVETSKY & SERROY, 2011) é evidência de que ele se tornou
“todo-poderoso”. Noam Chomsky (CHOMSKY, 1999) já havia percebido isso no final
do século passado, ao reconhecer o poder do Mercado influenciando a economia, a
política, a cultura, a moda, a ética, etc. Lypovetsky e Serroy (2011) também
perceberam essa realidade mais recentemente, ao afirmarem:
A Igreja, o socialismo, o Estado republicano, a nação, a
escola, as culturas de classe, mais nada disso constitui contrapesos
verdadeiros ao reinado absoluto do mercado. Esses sistemas perduram, mas são
cada vez mais redefinidos, reestruturados, invadidos pelas lógicas de
concorrência, competição e desempenho que se impõem como a matriz, a pedra
angular da organização de nosso universo social e cultural. O hipercapitalismo
revela a nova onipresença e onipotência do Homo
economicus, à extensão do modelo às esferas antigamente fora do domínio mercantil.
(LIPOVETSKY E SERROY, 2011, p.38)
O
Mercado está, portanto, se infiltrando na atual realidade e em todas as
esferas, gerando ajustes e adaptações nas diversas instituições e áreas,
ditando as regras, os valores, os objetivos e alimentando a ideia de que quem
quer sobreviver na presente era precisa se “atualizar”, ou seja, ceder às
prerrogativas e interesses mercadológicos. A religião, enquanto elemento
cultural, não está fora do alcance dos poderes do Mercado. É possível constatar
isso nos diversos modelos de crescimento de igreja, em várias teologias
contemporâneas e na reengenharia sofrida por diversas instituições.
1.2.2 A Influência institucional e
individual do mercado
O
pior de tudo é que a infiltração mercadológica não acontece apenas na
mentalidade institucional, mas também na mentalidade individual. Lipovetsky e
Serroy (2011) observam que:
o
modelo de mercado foi realmente interiorizado, rompendo o antigo tabu do
dinheiro. Daí em diante, tudo é pensado em termos de rentabilidade e de
desempenho, de maximização dos dividendos, de cálculos individualistas dos
custos e benefícios. (LIPOVETSKY E SERROY, 2011, 38).
Tal perspectiva impregnou-se na realidade
secular, mas também na religiosa. Tudo passou a girar em torno do capital, do
lucro e do poder que podem proporcionar. Infelizmente, muitos “venderam sua
alma” ao Mercado em busca de suas benesses. Contaminaram-se com os “manjares do
rei”, abandonaram doutrinas, crenças e valores. Deixaram a busca do ser em
detrimento da busca do ter (FROMM, 1986).
1.2.3 A Corrupção da espiritualidade
bíblica
No
mundo hipermoderno o hipercapitalismo vem conseguindo corromper a espiritualidade
bíblica, sadia, bem intencionada, desprovida de interesses outros.
Influenciadas pelo Mercado, algumas igrejas se mercantilizaram, se tornando
“pequenas empresas e grandes negócios”. E isso não é por acaso, mas está acontecendo
como uma tendência histórica, já que se manifesta na religião, na igreja, e
também na política, na educação, nas artes, enfim, na cultura em geral.
No
atual contexto, a cultura em suas diversas manifestações está a serviço do
Mercado. Da mesma forma se apresentam muitas religiões, em geral, e igrejas, em
particular, especialmente quando as pensamos em termos culturais. O que precisa
ser questionado é: o Mercado se tornou o “deus” a quem a religião serve? Será
que ser bem sucedida e próspera é a missão da Igreja? Isso não seria sucumbir à
tentação da relevância perante o mundo? Jesus legou um grande exemplo de
rejeição à tentação da relevância ao não sujeitar-se às tentações de Satanás no
deserto, que oferecia a ele suprimentos, poder e glória (Mt 4:1-11).
Em outros momentos da história a igreja experimentou situações semelhantes. Na Idade Média, por exemplo, a Igreja sucumbiu diante de interesses políticos, ao se unir ao Império Romano. Todos conhecem os desdobramentos nefastos desta união promíscua. Quando será que a cristandade contemporânea acordará para os riscos de se submeter ao controle de poderes político-econômicos, como os do Mercado? Quando a igreja se libertará da tentação de buscar a glória neste mundo?
2
O Übermensch como “modelo pastoral” na modernidade líquida
Há
uma ausência significativa de paradigmas no mundo atual, com a perda dos
modelos absolutos e definitivos por causa do pensamento relativista e do
“pensamento frágil” (VATTIMO, 2008). As tradições foram abandonadas e as
pessoas estão sempre em busca do novo. Por isso há um grande vazio quando se
pensa em referenciais pessoais e institucionais. O que falar, quando se pensa,
especificamente, no modelo para lideranças cristãs?
Os
novos modelos que vão surgindo, quando muito, parecem ser construídos do nada,
do vazio (nihil). Algumas poucas identidades, entretanto, são desenvolvidas
tendo por base ideias do final do Século XIX. O paradigma do ser humano, por
exemplo, sofreu nos últimos cinquenta anos uma poderosa influência do
pensamento nietzschiano (BAUMAN, 2009).
Friedrich
Nietzsche foi um filósofo alemão que viveu no final do Século XIX. De origem
luterana, neto e filho de pastores, estudou Teologia, mas logo a abandonou em
detrimento da Filologia e da Filosofia. Seguiu o pensamento dos filósofos
Schopenhauer e Schelling, seus antecessores (HALEVY, 1968). Tornou-se um dos
maiores críticos do Cristianismo de então, anunciando “a morte de Deus” em
obras como “O Anticristo”, onde questionou veementemente a igreja e o anúncio
do Deus cristão (NIETZSCHE, 2002).
Foi
Nietzsche quem criou o conceito de übermensch,
ao escrever o livro “Assim falou Zaratustra”, em 1883. A expressão é complexa,
mas pode significar “super-homem”, “além-homem”, ou ainda “homem superior”, ou
“homem mais elevado” (NIETZSCHE, 2011). A intenção era falar do homem ideal, em
sua perspectiva, aquele que se auto-afirma, se impõe, é determinado, altivo e
dotado de espírito livre.
Sobre
Nietzsche e seu pensamento, Bauman escreveu:
A receita ideal de Friedrich Nietzsche para uma vida
feliz, plenamente humana – um ideal que ganha popularidade em nossos tempos
pós-modernos ou ‘líquido-modernos’, é a imagem do Super-Homem, o grande mestre
da arte da autoafirmação, capaz de se evadir ou escapar de todos os grilhões
que restringem a maioria dos mortais comuns. O Super-Homem é um verdadeiro
aristocrata – ‘os poderosos, os bem situados, os altivos, que pensam que eles
mesmos eram bons e que suas ações eram boas’. (BAUMAN, 2009, p. 28)
Para
o filósofo alemão, o “super-homem” é um indivíduo cônscio de seus direitos e
por isso os reivindica; é apoiado pelo aparato social, que o legitima; é
possuidor da liberdade, que o torna capaz de não ceder aos controles externos -
por isso se nega a sujeitar-se a uma ideologia; além disso, luta para resgatar
toda a subjetividade, para que esta produza sua autonomia (TILLICH, 1986b).
Esse
homem mais elevado se encaixa no modelo da aristocracia do Século XIX, pois,
por se achar superior, a nobreza compreendia que nasceu para comandar os
demais. É dessa forma que Nietzsche, de maneira veemente, diferencia o
“super-homem” dos “rebanhos”: enquanto aquele é um ser livre e autônomo, estes
se mostram completamente dependentes, assujeitados e limitados. (TILLICH,
1986b).
O
modelo antropológico nietzschiano tem servido de base não apenas para definir o
padrão do homem comum, mas especialmente para moldar um perfil de liderança
para o início do Século XXI. Se isso não tem sido defendido abertamente, o é de
forma indireta e subliminar através da mídia, já que características como auto-afirmação,
independência, altivez, autodeterminação e personalismo fazem parte dos
referenciais almejados para a liderança contemporânea.
Como
a igreja “não existe para além do mundo”, mas está no mundo, sofre, portanto,
sua influência. Por isso, o modelo nietzscheano também enveredou nos últimos
tempos pelos arraiais evangélico-pentecostais, influenciando o estilo de vida
das pessoas, bem como a postura da liderança cristã, gerando uma casta de
intocáveis, de “homens superiores” ou “super-homens”.
Aliás,
esse assunto foi abordado na década de 1990 em livros como “Super-Crentes”
(ROMEIRO, 1998) e “Evangélicos em Crise” (ROMEIRO, 1995). O tema foi, aparentemente,
esquecido nas décadas posteriores, mas não foi enterrado, desenvolvendo-se “nas
sombras” eclesiásticas. Dessa forma, o übermensch
vem se tornando, conscientemente ou não, um modelo de liderança no meio
evangélico, e suas características já se fazem notar com certa clareza. A cada
dia é possível perceber novos líderes personalistas, ambiciosos, prepotentes,
egocêntricos, auto-afirmadores, “superiores” surgindo no meio do povo de Deus.
Essa afirmação é feita com tristeza e decepção.
Muitos
desses “super-homens” desenvolveram características negativas e marcantes que
os distinguem do estilo tradicional de liderança cristã. Eis algumas:
2.1 O Isolacionismo protecionista
É
real e crescente o estilo de liderança marcado pelo isolamento. Muitos são os pastores
que se separam das outras pessoas na tentativa de se protegerem, de se
resguardarem, como fazem artistas e determinadas autoridades. Muitos se
ausentam até das ovelhas e dos colegas, dando espaço para a criação do “mito”
em torno de sua figura. Eles vivem numa “torre de marfim”, num lugar acima de
todos os lugares (TILLICH, 1986b), o que intensifica a ideia de sua superioridade
e de sua singularidade.
Assim
como uma família real precisa de seu castelo, esses líderes precisam de suas
mansões para se esconder. Não atendem ao telefone, sendo mediados sempre por
secretários que definem quem pode ou não falar com “sua santidade”. Para
agendar uma entrevista ou reunião com eles só é possível com meses de
antecedência, o que os torna praticamente inacessíveis - por isso, muitas de
suas ovelhas acabam procurando o atendimento e o cuidado de outros pastores,
por não encontrarem lugar na agenda de seus pastores em suas igrejas.
Tal
postura de distanciamento é a mesma encontrada no estrelismo global, ou nas
constelações hollywoodianas. Tais líderes esquecem-se, entretanto, de que
Jesus, o maior exemplo cristão e de liderança cristã, andava no meio do povo,
frequentava a casa das pessoas, inclusive dos pobres, visitava, ia onde o povo
estava, ao invés de ficar sentado dentro de um gabinete, ou guardado em sua
casa em um condomínio 5 estrelas.
Talvez
fosse interessante que lessem a obra do teólogo norte-americano John Pipper
(2009), intitulada: “Irmãos, não Somos Profissionais”, onde o autor faz um
apelo aos pastores para que vivam e desenvolvam ministérios em simplicidade,
naturalidade e radicalidade profética. Ele afirma que os pastores estão sendo massacrados pela
profissionalização do ministério pastoral e que a mentalidade do profissional
não é a mentalidade do profeta, nem a mentalidade do escravo de Cristo. Ainda
diz que o profissionalismo não tem nada que ver com a essência e o cerne do
ministério cristão, e que, quanto mais o líder for profissional, mais morte
espiritual deixará em seu rastro ministerial (PIPPER, 2009). Sem dívida, um
alerta aos übermensches pós-modernos!
2.2 A Infalibilidade defectível
Uma
característica estranha ao Protestantismo e à Bíblia é a ideia de infalibilidade
da liderança. Durante séculos esta foi uma característica defendida pela liderança
da Igreja Romana, especialmente do Papa, mas ela vem sendo abandonada pelos
últimos pontífices, especialmente por Francisco I. Na contramão da história,
pastores, bispos, apóstolos, “paipóstolos”, patriarcas, “demiurgos” e
“semideuses“ evangélicos vêm assumindo a postura da infalibilidade.
Arrogantemente apresentam a falsa idéia de que não erram, jamais. Se não o
fazem com palavras, claramente, o demonstram com atitudes, gestual e
ritualisticamente. Como estão blindados, guardados a sete chaves pelos seus
auxiliares, e por se resguardarem nas “torres de marfim”, as pessoas não podem conhecer
mais profundamente seus líderes e ter uma idéia de quem verdadeiramente são no
cotidiano.
Vários
líderes estão se escondendo atrás de uma imagem apresentada no púlpito ou veiculada
na mídia, milimetricamente construída e forjada pelo marketing eclesiástico.
Querem ser vistos como super-homens, super-crentes, super-líderes,
super-pastores, mas não passam de pessoas comuns como você, sujeitas a pecados,
falhas, escolhas indevidas e fracassos. Como a sociedade pós-moderna ama os
simulacros (BAUDRILLARD, 1981) mais do que a realidade, tais pessoas encontram
êxito em sua escalada rumo ao “sucesso” ministerial.
2.3 A Inquestionabilidade contestável
Devido
à infalibilidade, se desenvolve também outra característica: a inquestionabilidade.
Há líderes que não suportam ser questionados ou cobrados. Acham-se
“sobre-humanos”, “perfeitos” e não aceitam críticas. Sua palavra e seus planos
não podem ser colocados em xeque, nem mesmo diante da Bíblia. O interessante é
que muitos deles constantemente mudam de opinião, de visão, trocam os planos,
as estratégias e terminam por desdizer o que disseram anteriormente. A
consequência dessa característica é que as pessoas que criticam tais líderes
vão sendo banidas, execradas e defenestradas das comunidades de fé. Isso pode
acontecer porque, simplesmente, alguém perguntou a base bíblica de um ensino,
ou de um novo direcionamento institucional.
Em
determinadas igrejas já não há espaço para questionamentos, para o livre
pensamento, nem para se tirar dúvidas. O que o líder diz tem peso de
“revelação” dada por Deus. E ai daquele que se levanta para por em dúvida
“deus”! O espírito reformado do “livre sacerdócio do crente”, que ensina que já
não há sacerdotes, de que cada crente tem livre acesso a Deus em Cristo Jesus
(BATTENSON, 1986), vem se perdendo há muito.
2.4 O
Visionarismo devaneador
Outra
característica desse tipo de liderança é o visionarismo. É inadmissível pensar
num líder sem visão, que não saiba para onde está indo e conduzindo o povo de
Deus. Mas, é ingenuidade acreditar que Deus só fala aos pastores, ou através
dos pastores. Na Bíblia Deus falou até através de um jumento (Nm 22 e 23). Acreditar
que Deus só fala com um tipo de pessoa é jogar na lata do lixo importantes
passagens bíblicas, como 2 Co 3:6 e 1 Pe 4:10,11, que afirmam que Deus concede
dons e ministérios diferentes para que seus ministros (todos os crentes) por
exercer seus ministérios eficientemente.
Mas
há líderes que, infelizmente, agem como se só eles conhecessem Deus e a Bíblia,
como se apenas eles pudessem falar com Deus e ouvir a sua voz. Pensar desse
modo é retornar ao sacerdotalismo vétero-testamentário, pré-reformado e
anti-Bíblico. Um grande retrocesso.
2.5 A Filocracia luciferiana
Uma
das principais tendências da liderança contemporânea é a filocracia (φιλοκρατία), onde φιλiα
(filia) quer dizer amor, amizade, e κρατos
(kratos) refere-se ao poder,
apresentando tal expressão a idéia de “amor ao poder” (BAILLY, 1950).
Quando
alguém desenvolve esse sentimento e ele passa a ter lugar especial em suas
motivações, o ministério exercido se torna um “meio” para alcançar outro “fim”,
que é o poder! Muitas pessoas, entre elas alguns ministros, são ávidas por
poder. Isso é inquestionável. Lidar com o poder não é tarefa fácil, pois o
mesmo é atraente, pode trazer inúmeros privilégios pessoais, gerando certo
sentimento de superioridade. Se a pessoa não está atenta a esses fatores e
começa a sentir prazer com os benefícios, pode cair numa grande cilada. Em
pouco tempo poderá estar manifestando atitudes arbitrárias, autoritárias e manipuladoras.
Um
famoso teólogo alemão do século passado, falando sobre a relação entre poder,
amor e justiça, afirma que é preciso buscar o poder de amar e não amar o poder
(TILLICH, 2004). O amor exasperado ao poder e por suas benesses é destruidor e tem
sido o motivo de queda e reprovação de muitos líderes cristãos nesses tempos
hipermodernos.
2.6 A Ganância nada generosa
O
amor ao poder anda pari passu com a
ganância. A cobiça financeira pode ser uma das grandes tentações ministeriais.
É bíblico que o trabalhador seja digno de seu salário e que o obreiro deva
receber remuneração condigna para fazer a obra de Deus sem gemer (I Tm 5:8). O
que é estranho, infelizmente, é a tendência de existirem pastores ricos, que
acumularam riquezas através do ministério, ou de atividades ligadas ao
ministério, muitos dos quais usam o poder econômico para se impor e se auto-afirmarem
sobre os demais líderes e irmãos cristãos.
Alguns
desses líderes tentam justificar o estilo de vida nababesco que possuem através
da Bíblia, respaldados pela Teologia da Prosperidade! Batem no peito e afirmam
serem “filhos do rei”! O apóstolo Paulo, entretanto, orientando o pastor Timóteo,
afirma que “... o amor ao
dinheiro é raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro,
desviaram-se da fé e se atormentaram a si mesmas com muitos sofrimentos” (1 Tm
6:10). Certamente, tal texto foi apagado da Bíblia de famosos pregadores!
Nos
últimos anos a mídia tem feito questão de propagar certa competição entre “grandes”
pastores evangélicos (CARDOSO, 2013; GOIS, 2020), ao fazer comentários sobre
seus relógios caros, carros caríssimos, mansões e “jatinhos” milionários.
Parece haver uma troca “em cascata” por novos bens sempre que um dos “notáveis”
aparece com algo novo. “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”, como dizia o
sábio Salomão (Ec 12:8)!
2.7 A Prepotência autocrática
Poder
e dinheiro podem produzir prepotência e sentimento de superioridade no coração
de quem os possui. Isso acontece quando se valoriza o “ter” em detrimento do
“ser”. Como na sociedade Ocidental, que é capitalista, essa é uma de suas ênfases,
tal comportamento é reproduzido em larga escala, afetando inclusive algumas lideranças
religiosas.
Muitos
se esqueceram das diversas exortações bíblicas quanto ao cuidado que é preciso
ter com as riquezas, como dito acima! Por isso focam no acúmulo de bens como se
eles pudessem transcender a realidade material e os usam como elemento de
empoderamento e de manifestação de superioridade sobre os demais. Diante dessa
conjuntura, os notáveis sentem que são melhores, mais crentes, mais santos,
melhores pastores... Alguns se sentem quase divinos.
Os
obreiros que realizam seu trabalho focados no vil metal, preocupados com os
aumentos de salário, com as reposições e com o recebimento de compensações
ligadas ao crescimento numérico e financeiro das igrejas estão entre esses.
Infelizmente o mercenarismo vai ganhando espaço e tem feito escola!
2.8 O
Personalismo narcisista
Por
fim, mas sem esgotar o assunto, a presença do personalismo é notória no métier
pastoral. Os nomes de pastores e visões ministeriais viraram verdadeiras grifes na atualidade, possuindo mais
visibilidade do que o Evangelho, Cristo ou a Igreja juntos. A busca de
relevância, notoriedade e o desejo de serem reconhecidos pelos outros, num
mundo vazio e sem significação, tem feito com que lideranças queiram ver seus
nomes em letras garrafais iluminadas, brilhantes e em destaque. Assim, o
Evangelho vai perdendo sua essência e se identificando com a igreja “A” ou “B”,
ou com o pastor “C” ou “D”, esvaziando-se da identidade verdadeiramente cristã.
No
já citado livro A Arte da Vida, Zygmunt Bauman (2009) afirma existirem dois
modelos humanos básicos e duas formas de viver a vida: para si mesmo e para o
outro. O sociólogo polonês apresenta Jesus Cristo como referencial de quem vive
para os outros e apresenta o pensamento nietzschiano, em especial o übermensche, como modelo de quem vive
para si, centrado no individual, vivendo egoisticamente. Conclui sua obra afirmando
que não há verdadeira felicidade em viver a vida egoisticamente (BAUMAN, 2009).
Da
mesma forma, pode-se dizer que, quando se pensa no exercício ministerial não é
possível imaginar o übermensch como paradigma
adequado para aquele que dedica a vida a Deus e ao próximo. O ministério pressupõe,
no mínimo, que o seu candidato esteja disposto a negar-se a si mesmo (Mt
16:24), ao invés de se auto-afirmar. Como Cristo disse, “se o grão de trigo,
caindo na terra não morrer, fica só, mas se morrer produz muito fruto” (Jo
12:24).
Nesse
sentido, reconhecemos que um ministério sadio, relevante e realmente
comprometido com o Evangelho, não pode ser desenvolvido tendo o übermensch como modelo. Como pastorear e
conduzir um rebanho afastando-se dele, enclausurando-se, escondendo-se? A
Bíblia diz que a luz deve estar no velador, de onde ilumina a todos (Mt 5:15).
Como ser exemplo para os outros, se colocando num patamar superior,
inalcançável, perfeito? O próprio apóstolo Paulo julga não ter alcançado a
perfeição, mas afirma seguir para o alvo (Fp 3:13,14). Para ser exemplo é
necessário muitas vezes “descer”, mais do que “subir”: Jesus foi exemplo disso,
como atesta Paulo aos filipenses (Fp 2:5-11). Quem, dentre os homens, foi ou é
irrepreensível, além de Cristo? A Bíblia afirma que todos pecaram (Rm 3:23).
Como guiar as pessoas e não manter um diálogo aberto com elas, dispondo-se a
responder suas questões e dúvidas? Todos devem estar prontos em apresentar a
razão de sua esperança (I Pe 3:15). Por que voltar ao sacerdotalismo, se o véu
do templo já foi rasgado? Hoje existe apenas um sumo-sacerdote: Jesus Cristo
(Mt 27:21; Hb 5:6). Como as pessoas se sentirão amadas, se o foco dos líderes é
o poder e o dinheiro, e não o serviço ao próximo e a Deus? Jesus veio servir e
deve-se seguir seu exemplo (Cl 3:4; Gl 5:13). Como cuidar de pessoas se
auto-afirmando e sendo prepotente, valorizando mais o ter do que o ser? A
orientação bíblica é de não se considerar superior a ninguém e não fazer
acepção de pessoas (Mt:23:12; Tg 2:1-9). Como anunciar o Evangelho se colocando
acima do Evangelho? A Bíblia ensina a humildade para todos, inclusive para os
líderes: “que Ele cresça e eu diminua” (Jo 3:13).
A
Bíblia continua sendo regra de fé e prática. Nela há orientações ministeriais
seguras. Contextualizar, adaptar e seguir modelos ministeriais fundamentados em
“filosofias”, ideologias e modismos contemporâneos é um risco perigoso. Formar
uma nova geração de ministros-empresários, “bem sucedidos”, senhores de si,
prepotentes e gananciosos é fomentar a derrocada da igreja cristã e seu desvio
de finalidade. Que ministros e futuros pastores não sejam enganados. Que a
ganância e o desejo de ser relevante não destruam os ministérios!
3 O
Mal-estar pastoral na hipermodernidade
Se
espertalhões, empresários e profissionais da religião têm usado indevidamente a
religião e se aproveitado da boa fé da população, como disse Lutero nas 95
Teses, se ocupando dos bens dos homens, ao invés de cuidar dos homens de bem
(BETTENSON, 2020), por outro lado, nem tudo são flores para quem milita na área
religiosa.
O novo momento histórico tem produzido
radicalizações, instabilidade, desnorteamento, perda de referenciais, e com
eles, vem estabelecendo certo mal-estar pessoal e social. Independentemente do
conceito utilizado sobre o mundo contemporâneo, é inegável a existência de
alterações na Modernidade, promovendo uma estrutura globalizada e uma desorientação
generalizada que impacta a todos. Acredita-se que essa desorientação seja
gerada pela depreciação dos valores superiores, pela ruína do fundamento
metafísico do saber, da lei e do poder, e pela desintegração dos pontos de
referência mais básicos da vida humana (LIPOVETSKY E SERROY, 2011). Os autores
franceses afirmam que...
Num mundo carente de orientação e influenciado pelo
hiperindividualismo a sociedade lança sobre os indivíduos as glórias do sucesso
ou a culpa pelos fracassos, algo anteriormente direcionado a um grupo ou classe
social. O risco do fracasso, a necessidade de capacitação constante, a
concorrência e o medo da avaliação permanente, produzem angústia, baixa estima
e a autodesvalorização do trabalhador contemporâneo, especialmente daquele que
experimenta alguma situação de fracasso e humilhação. Por isso, pode-se dizer
que a segurança (estabilidade) no trabalho se tornou “artigo de luxo”, algo
praticamente inacessível. Essa instabilidade profissional produzida no mundo
hipermoderno desestabiliza as personalidades e as identidades, desequilibra a
vida mental e moral dos indivíduos tornados inseguros e que já não dispõem do
apoio dos antigos quadros da vida coletiva. No sistema econômico de curto
prazo, em que os trabalhadores são ‘descartáveis’, um grande número de pessoas,
inclusive da classe média, vive uma experiência cruel de fracasso pessoal no
isolamento e na vergonha de si mesmo, que dão origem à amargura, ao
desencorajamento, à depressão. (LIPOVETSKY E SERROY, 2011, 37).
Dessa
forma, a instabilidade profissional vem trazendo transtornos, pois pode
produzir profundo mal-estar patológico, que se manifesta através de problemas
como síndrome do pânico, depressão, ansiedade (CURY, 2014), e, mais
recentemente, a Síndrome de Burnout
(SELIGMANN-SILVA, 2013). Profissionais de alta performance, de grande responsabilidade, que possuem metas cada vez
maiores e que lidam com pessoas e seus problemas são os alvos principais desse
novo quadro que se estabelece. Nesse contexto estão inseridos diversos
profissionais, entre eles, os ministros religiosos em geral, e os pastores, em
particular.
3.1 Hipermodernidade, profissionalização e saúde pastoral
Ao
contrário do que muitos pensam, a vida ministerial não é só glamour! Na atualidade, os pastores são
colocados diante de situações cada vez mais complexas, debaixo de responsabilidades
cada dia maiores, de exigências às vezes sobre-humanas. Muitos ministros têm
que vencer metas, se atualizar constantemente, inovar continuamente, criar
sempre, administrar com competência, tudo sem perder o controle da situação.
Isso, além do que já era exigido anteriormente: ser homem espiritual, íntegro,
moderado, sábio, que tem família ajustada e vida secular ilibada. Precisa
“ser”, “fazer” e “ter” todas essas características, além de lidar na grande
maioria das vezes com pessoas difíceis, nem sempre ajustadas, íntegras, ou
leais, o que torna o ambiente ministerial muitas vezes inóspito (PEREIRA,
2013).
3.1.1
O Mal-estar dos pastores no ministério
Por
isso, muitos são os ministros que experimentam um profundo mal-estar. Vários se
encontram machucados e feridos. Estão enfrentando os desafios, as lutas e as
crises ministeriais à base de oração, leitura bíblica, mas também de
medicamentos “controlados” e de terapias. Alguns encurtaram a carreira ministerial
abruptamente, com enfermidades graves que os deixaram incapacitados; outros o
fizeram através da morte prematura. Decepção, sofrimento, amargura e deserção
não são palavras incomuns aos ministros contemporâneos.
3.1.2
O Ministério e o isolamento
Muitos
ministros vão enfrentando suas crises, na maioria das vezes, no mais completo
isolamento, na mais profunda solitude: uma solidão esquisita que acontece em
meio a dezenas ou centenas de pessoas ao seu redor. Um isolamento que é gerado
porque os outros pensam que pastor é um super-homem e que seria fraqueza
adoecer ou ter um esgotamento; ou então, porque o pastor mesmo acha isso,
culpando-se pela “falta de fé”, ou pior, acreditando que Deus o teria
abandonado à própria sorte, sendo um mau “chefe”, um Senhor displicente.
Alguns
líderes se isolam, também, por não confiarem nos outros. Há quem possua
dificuldades pessoais em se relacionar e confiar, talvez por causa de alguma
experiência frustrante no passado. Outros não confiam porque convivem com pessoas
difíceis, desleais, competitivas, desagregadoras e realmente indignas de
confiança. Tais pessoas podem ser os membros das comunidades de fé, ou,
infelizmente, os colegas de ministério, que nem sempre estão dispostos a
desenvolver relacionamentos sadios e íntegros. Não são raros os casos de perseguição,
difamação e destruição da honra de ministros pelos próprios colegas. Por isso,
pastores e demais ministros podem enfrentar muitas lutas, terem muitos
dissabores e ficarem, como resultado, esgotados e enfermos.
Necessário
é se lembrar, entretanto, que este não é um problema somente dos pastores, pois
os ministros fazem parte de uma conjuntura muito maior. Tal mal-estar não é
pessoal ou apenas ligado a uma profissão. Ele é estrutural e global, atingindo
ministros de várias instituições, bem como profissionais de várias áreas
diferentes. O mesmo esgotamento experimentado por pastores atinge professores,
bancários, policiais, etc. (JBEILI, s/d)
3.1.3
O Ministério e a instabilidade “profissional”
Na
verdade, o mundo mudou, as cobranças aumentaram e a instabilidade profissional
se agigantou! A realidade eclesiástica já não é a mesma. Para muitos, a “graça”
foi trocada por “direitos”, a convivência fraterna por clientelismo, o serviço
ministerial por performance
“artística” ou empresarial. Muitos ministros estão adoecendo por causa da
sobrecarga, devido à responsabilidade individual de ter que prever o
imprevisível, controlar o incontrolável e agradar aqueles que nunca se
satisfazem. Não que essa realidade seja positiva, mas infelizmente é o que vem acontecendo,
porque a cultura hodierna impõe tal conjuntura: um mundo marcado pela mais radical
instabilidade.
3.2 O Enfrentamento da situação
Para
enfrentar essa realidade desalentadora, é importante que os “ministros
hipermodernos” desenvolvam pelo menos três atitudes para reagir a essa
situação. São elas a capacitação continuada, a resiliência, e a confiança
incondicional em Deus.
3.2.1
A Necessidade de capacitação continuada
O
mundo muda o tempo todo. Especialmente a realidade de mundo atual está em
constante processo de mutação. O desenvolvimento da educação, acompanhado pela
comunicação de massa tem gerado rápidas transformações na sociedade. Isso
aponta para o fato de que a cobrança pela atualização é continua, mas também
indica que a possibilidade de acompanhamento das alterações paradigmáticas é
possível.
Por
isso se fala tanto de educação continuada no mundo hodierno. O processo
educacional deve ser contínuo para que as pessoas estejam sempre atualizadas e
os profissionais capacitados. No caso do pastor, ele deve ser aberto às
continuas capacitações e atualizações ministeriais para que esteja
constantemente equipado a fim de atender os novos desafios apresentados pela
igreja e pelo mundo. Não dá para acompanhar as mudanças com uma formação de 10,
20, 30 anos atrás. É preciso fazer novos cursos e pós-graduações. Estudar
sempre é um desafio atual, mesmo que não seja através de cursos formais, mas
pelo uso contínuo da leitura, da assistência a palestras, mini-cursos, etc.
Aliás, a educação teológica e ministerial no Século XXI precisa capacitar para
a auto-aprendizagem e para a pesquisa (MAGALHÃES, 2016).
3.2.2
A Importância da resiliência
Resiliência
é a capacidade de suportar pressões e se adaptar às novas exigências que a
realidade impõe se reinventado sempre. É uma idéia que veio das “ciências
duras” e acabou encontrando espaço nas Ciências Humanas. Inúmeras nuances do
conceito de resiliência podem ser observadas na literatura contemporânea:
Ralha-Simões (2001), a define como uma
especificidade estrutural do desenvolvimento psicológico, traduzindo a
resiliência como a capacidade que determinadas pessoas, grupos ou instituições
possuem de evitar, enfrentar ou mesmo ultrapassar os efeitos desestruturantes esperados
diante de situações dadas à exposição a certas experiências desconstrutivas. Nessa
concepção, ela é vista como elemento estruturante diante das possibilidades
desagregadoras e desustruturantes de fases da vida e em determinados contextos.
Placco (2001) conceitua resiliência como a
capacidade que a pessoa tem de responder de forma consistente aos desafios e
dificuldades existenciais, de reagir com flexibilidade e capacidade de
recuperação diante desses desafios e circunstâncias desfavoráveis, apresentando
uma atitude otimista, positiva, perseverante e mantendo um equilíbrio dinâmico
no decorrer e após à adversidade experimentada. Aqui resiliência está ligada à
postura otimista, positiva, perseverante e dinâmica de lidar com os problemas.
Para Silva (2003) a resiliência refere-se à
capacidade das pessoas de enfrentar e responder de forma positiva às
experiências que trazem alto potencial de risco para a saúde e para o desenvolvimento
do indivíduo. Nessa perspectiva, ela é vista como resposta aos desafios e
riscos que a vida impõe.
Para Junqueira e Deslandes (2003) a
resiliência é observada como a capacidade individual de, em determinadas
situações e de acordo com as circunstâncias, lidar com as crises não se
deixando sucumbir a ela, alertando para a capacidade de relativizar, em função
do indivíduo e do contexto, o aspecto de "superação" de eventos muito
estressores. Aqui ela já é percebida como reação humana às adversidades e à auto-superação
do estresse destrutivo.
Portanto,
a partir dos conceitos vistos, e vivendo num mundo tão instável e desafiador, o
pastor necessita lidar com frustrações e traumas decorrentes das lutas da vida
e de situações ligados especificamente ao exercício profissional. Ele precisa
suportar pressões, lidar com frustrações, redirecionar planos, repensar
estratégias, readaptando-se às novas exigências, sem perder-se no processo.
Quem não desenvolve essa característica, a resiliência, dificilmente consegue
desenvolver um ministério que deixa frutos que permanecem (SELIGMANN-SILVA, 2013).
Entretanto,
ser resiliente não significa abrir mão de ideias e valores considerados
fundamentais para si mesmo, nem se deixar sucumbir pelo “sistema”, fazendo
malabarismos para permanecer no cargo e fazer parte do “jogo”. É preciso ter consciências,
valores e coerência.
3.2.3
O Fundamento da confiança incondicional em Deus
Quanto
à fé, a confiança incondicional em Deus (TILLICH, 1985), ela é fundamental para
se enfrentar a instabilidade e as incertezas da vida e do ministério. Confiar
somente em si mesmo, em seu potencial, não é suficiente para obter paz e
segurança, a fim de vencer a ansiedade e os temores que habitam o coração do
homem. Confiar nas instituições e nas pessoas muito menos. Somente a certeza de
que Deus é quem guia, sustenta e ampara os ministros, porque somente Ele é o
Senhor, pode garantir estabilidade emocional e um ministério abençoado, estável
e frutífero.
Infelizmente,
muitos envolvidos nas circunstâncias ministeriais têm colocado sua confiança
incondicional nas instituições, como se elas pudessem garantir estabilidade.
Outros desenvolvem uma postura política, criando grupos e estabelecendo sua
confiança na influência de gente empoderada que lhe dê apoio, sustentação e
amparo na adversidade. Outros ainda confiam em estratégias e modelos que vão
sendo alterados constantemente, com a finalidade de garantir estabilidade,
através de programas diversos, eventos diferentes e entretenimento
continuamente inovador. Mas, nada disso traz segurança ministerial. Só Deus
pode efetivamente trazer estabilidade ao ministro no exercício do ministério,
seja na hora de iniciá-lo, seja durante seu desenvolvimento ou mesmo no momento
de encerrá-lo.
Conhecedores
de suas limitações pessoais, cientes de que os tempos são maus, mas também
dotados de confiança incondicional em Deus, do desejo de continua capacitação e
da capacidade de resiliência, que os pastores possam diariamente se fortalecer
e se reinventar para desempenhar ministérios abençoados, íntegros, eficazes e
agradáveis a Deus.
Considerações finais
Os
tempos são complexos e difíceis. Igrejas, líderes em geral e pastores devem ser
treinados a lidar com a influência mercadológica da hipermodernidade sobre a
esfera religiosa. Não podem rejeitá-la completamente, muito menos sucumbir
diante dos seus ditames. Terão que exercer uma relação crítica constante,
“examinado tudo e retendo o que é bom” (I Ts 5:21).
O
mesmo deve ser feito com as ideologias mais comuns que vigoram na atualidade,
seja o liberal-capitalismo, ou o comuno-socialismo, vendo-as como filosofias
humanas, sujeitas ao contexto histórico, e, portanto, carecendo de análise
crítica constante e consistente, aproveitando o que é coerente e desfazendo-se
do “lixo”.
É
preciso repensar a visão de liderança personalista, inquestionável, prepotente
e gananciosa comum nesse início de século. Jesus precisa sempre ser visto como
o paradigma para a liderança cristã. O líder é antes de tudo um “servidor” e
não um “chefe”. Como disse Jesus: “Não será assim entre vocês. Pelo contrário, quem quiser tornar-se
importante entre vocês deverá ser servo, e quem quiser ser o primeiro deverá
ser escravo” (Mt 20:26,27).
Quanto
ao mal-estar ministerial, muito líderes precisam de socorro, pois estão em
sofrimento, sozinhos e adoecidos. Precisam ser capacitados para enfrentar essa
era de instabilidade. Necessitam de apoio para desenvolver a resiliência
necessária para não se perderem na caminhada ministerial. É primordial terem fé
incondicional em Deus, desenvolvendo um sentimento de dependência contínua do
Senhor, a fim de cumprirem cabalmente o seu chamado e poderem dizer como o
Apóstolo Paulo ao fim da vida: “Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé” (2 Tm 4:7).
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[1] Membro da Fraternidad Teologica Latinoamericana. Graduado em Teologia pelo STBNB/FTSA, Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior pelo ITOP, Pós-Graduado em Telemática pelo IFTO, Mestre em Ciências do Ambiente, pelo PPGCIAMB-UFT, Palmas - TO. Professor de Teologia no STBT, SETA e STBG, em Palmas – TO.
[2] Hopi Hari é um parque muito conhecido na Cidade de São Paulo, sendo ao mesmo tempo, local de entretenimento e empresa com fins lucrativos.
[3] Autopoiesis é um princípio ligado à Teoria dos Sistemas, para o qual todo sistema possui a capacidade de se auto-organizar, de se auto-criar, se adaptando às necessidades e mantendo-se vivo e em crescimento (MATURANA; VARELLA, 1979 ).
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