terça-feira, 19 de julho de 2022

 

UMA IGREJA ARTESANAL: BUSCANDO COM SIMPLICIDADE O QUE REALMENTE IMPORTA

Diogo Souza Magalhães[1]

RESUMO

O presente artigo constata a produção em série de modelos eclesiásticos no mundo hipermoderno, por influência da visão de mercado sobre a religião, o que tem massificado as comunidades de fé evangélicas, tornando-as semelhantes, pesadas, complexas e onerosas. Reconhece a necessidade de estabelecer igrejas artesanais, focadas na simplicidade do Evangelho e na singularidade da estrutura eclesiástica, desenvolvidas à luz de cada contexto e possibilidades, objetivando mais o conteúdo do que a forma eclesiástica. Aponta para a urgência de desenvolvimento de perspectiva de espiritualidade bíblica, simples e alternativa, voltada para o aprofundamento da experiência interior e seu desdobramento nas relações humanas.

PALAVRAS-CHAVE

Igreja; Espiritualidade; Hipermodernidade; Artesanal; Simplicidade.

ABSTRACT

This article examines the mass production of ecclesiastical models in the hypermodern world, spurred by the application of the market view to religion, which impels evangelical faith communities, shaping them into virtually uniform, ponderous, complex and expensive entities. This evaluation highlights the need for artisanal churches, focused on the simplicity of the Gospel, which includes tailoring ecclesiastical structure to adapt to each specific context, with the goal of focusing more on the content than the churches form. It points to the urgency of developing a simpler and alternative biblical spirituality perspective, the deepening of inner faith experience and its unfolding in human relations.

KEYWORDS

Church; Spirituality; Hypermodernity; Artisanal; Simplicity.

Introdução

O mundo contemporâneo é marcado pela existência de um sistema de produção em larga escala. Produzem-se coisas, instituições, estruturas, sistemas, ideias, valores, hábitos em série para suprir o mercado ávido por consumo. 

A produção em larga escala surgiu com a Revolução Industrial no Século XVIII, na Inglaterra, quando a máquina substituiu parcialmente a mão de obra humana e o trabalho especializado se tornou padrão, aumentando a capacidade de produção, intensificando as relações comerciais e estendendo o poder do mercado sobre a sociedade. Com o advento do Século XX, desenvolveu-se a produção em série, primeiramente na indústria automobilística norte-americana, que criou a linha de produção, intensificou a especialização e estruturou a linha de montagem, aumentando ainda mais a capacidade da produção industrial, fazendo o setor secundário da economia bater sucessivamente seus recordes. O que parecia ser o ápice de um modelo mostrou-se defasado, quando no Japão foi criada na segunda metade do Século XX a produção enxuta, que aumentou a robotização industrial, diminuindo consideravelmente a participação humana no processo de produção, enxugando os custos e os estoques para baratear o preço do produto final e aumentar a capacidade de produção.

Com o fortalecimento do processo industrial aumentou-se a produção, intensificou-se o comércio, fomentou-se o consumo, desenvolveu-se o marketing, estabeleceu-se o consumismo. Houve um boom desse modelo de produção, expandindo seus tentáculos pelos quatro cantos do mundo, favorecendo, inclusive, o desenvolvimento da globalização. Produtos foram feitos em larga escala, seguindo determinadas tendências, técnicas e materiais. Conceitos foram aprimorados e superados em menos tempo. O modelo se superou continuamente, batendo sucessivamente seus números anteriores.  Com o passar dos anos, entretanto, observou-se que este modelo que primou a princípio não apenas pela quantidade, mas pela qualidade, criatividade e superação contínua, começou a exercer certa ditadura no consumo, oferecendo sua volumosa produção de materiais nem sempre de boa qualidade, diga-se de passagem, ao mercado, às vezes sem muita criatividade e sem personalidade, caso comum no Século XXI, com a disseminação dos produtos popularmente apelidados no Brasil de ching ling, ou do Paraguai.

Essa constatação fez com que muitas pessoas deixassem (ou diminuíssem) o consumo de produtos industrializados e buscassem novamente os produtos artesanais, nos quais encontraram mais originalidade, maior criatividade, materiais alternativos, diferenciados, seguindo a política ambiental, enfim, produtos não massificados. Isso aconteceu, em especial, com pessoas que resolveram abandonar a superficialidade existencial do mundo hipermoderno e se lançaram em busca de uma reflexão mais profunda acerca da realidade, se tornando dotadas de maior senso crítico e do desejo de viver um estilo de vida menos massificado e consumista, mais natural e alternativo, fugindo dos modismos e padrões dos monopólios industriais, mercantis, institucionais, culturais e religiosos do mundo globalizado.

Afirma-se institucionais, culturais e religiosos porque o modelo industrial de produção em massa entranhou-se de tal forma na cultura Ocidental, que se tornou parte dela, influenciando não apenas a produção material, mas também a imaterial, promovendo o aparecimento da indústria cultural (Adorno, 2003), fomentando o mercado institucional e até mesmo o mercado religioso (Lipovetsky & Serroy, 2011). Na atualidade, tudo é produzido em larga escala, desde carros, computadores, canetas, mesas, etc., até ideias, valores, modelos, programas, estruturas, restando pouquíssimas opções para quem não está alinhado a essa tendência de viver a vida e aos modismos propostos pela globalização.

Quando se fala na religiosidade atual, especialmente, percebe-se que a mesma vem sofrendo poderosa influência da cultura-mundo, que mercantilizou a fé, tornando-a mais um produto comercial. Lipovetsky, um dos maiores pesquisadores sobre o assunto, comenta a subjugação da religião pela cultura do mercado, ao dizer que...

A Igreja, o socialismo, o Estado republicano, a nação, a escola, as culturas de classe, mais nada disso constitui contrapesos verdadeiros ao reinado absoluto do mercado. Esses sistemas perduram, mas são cada vez mais redefinidos, reestruturados, invadidos pelas lógicas de concorrência, competição e desempenho que se impõem como a matriz, a pedra angular da organização de nosso universo cultural. O hipercapitalismo revela a nova onipresença e onipotência do Homo Oeconomicus, a extensão do modelo do mercado às esferas antigamente fora do domínio mercantil. (Lipovetsky & Serroy, 2011, p. 38)

 Para aumentar seu poder de atratividade social a cultura-mundo massificou o modelo religioso, ajustando sua imagem à da cultura pop, sua administração ao modelo empresarial, seus objetivos aos do terceiro setor (diversão, beneficência, comércio) e sua espiritualidade a certo imanentismo intra-mundano.  Influenciada pela cultura de mercado global, a religião perdeu o seu foco, como afirmou ironicamente o filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, quando denunciou a superficialidade e falta de propósito da religiosidade atual: “as religiões correm o risco de virar uma mistura de Hopi Hari, fanatismo brega e dieta balanceada” (Pondé, 2012, p. 121).

Além disso, a cultura-mundo diminuiu o peso que a religião possui, por lidar com a interioridade, moralizando, relativizando e destruindo conceitos e axiomas, como bem disse Pondé: “(o) marketing moral (...) simplifica a vida de uma forma como nem o puritanismo fez, porque este se baseava no medo do ‘pecado em mim’, e os puros de hoje não têm pecados.” (Pondé, 2014, p. 95). Por isso, as igrejas atuais focam mais na estrutura, nas programações, nos números, no lazer, do que na subjetividade e no mundo interior das pessoas. Sem dúvida alguma, o foco da religião hipermoderna é a forma, a estrutura, e não o conteúdo, o que tem como consequências a superficialidade, a perda de identidade, o estranhamento da transcendência e o desenvolvimento de uma gaiola imanentista.

É a proposta deste artigo, apontar para a realidade de que não deve haver um modelo único ou supremo de igreja na atualidade (Kimball, 2008) determinado pelo mercado globalizado, mas que é possível estipular paradigmas eclesiásticos que sirvam de referenciais para que se possa ser igrejas efetivamente cristãs (conteúdo), mesmo que aparentemente diferentes (forma), dando lugar a certa diversidade eclesiológica. Neste caso, aponta-se para a urgência de se estabelecer modelos religiosos mais simples, artesanais e alternativos voltados para a ênfase na experiência interior (sem abandonar a exterior e o aspecto relacional), marcados pelo cristocentrismo mediado pelas Escrituras, pelo entranhamento do Espírito Santo, pela manifestação de dons e pelo exercício de ministérios, pela vivência do Evangelho, pelo estudo, ensino e pregação da Palavra de Deus, pela evangelização, discipulado e pelo fazer o bem, assim como pelo culto sem panacéias e teatralidade, baseada na vivência relacional íntegra. Enfim, a proposta é buscar uma expressão religiosa não massificada, diversa e focada numa espiritualidade profunda.

Eis, a seguir, algumas características de uma igreja artesanal: 

1. A Ênfase no aprofundamento da vida interior

O filósofo francês Gilles Lipovetsky compreende que o atual momento histórico, chamada por ele de Era do Vazio, se tornou marcado por características como solidão, superficialidade, ausência de sentimentos, apatia, indiferença, perturbações narcísicas e dessubstancialização do sujeito (Lipovetsky, 2005), o que aponta para o esvaziamento pessoal e para a desorganização interior, repercutindo diretamente nas relações sociais e no desenvolvimento de uma afetividade sadia.

Pondé, a partir de outras reflexões chega à mesma conclusão, ao afirmar que a sociedade atual perdeu grande parte da profundidade existencial e de pensamento por dois motivos: a secularização e o desenvolvimento da religiosidade oriental no Ocidente, que não enfatiza os conceitos de pecado e de graça, comuns à religiosidade judaico-cristã. Além disso, apresenta o crescimento das tendências religiosas lights dentro do Cristianismo contemporâneo, muito mais preocupadas com performances, programas e diversões, do que com a busca da interioridade e o aprofundamento da experiência do Transcendente (Pondé, 2012).

Por outro lado, o mesmo autor aponta para o fato de que uma espiritualidade sadia implica no confronto com a condição humana, que requer autoconhecimento, introspecção e silêncio...

A verdadeira espiritualidade trilha aquele caminho que os pietistas alemães (luteranos que odiavam o mundo e viam o pecado em si mesmos e no mundo o tempo todo e, por isso, faziam silêncio para acalmar a Criação do ruído do mal) chamavam de ‘inferno do conhecimento de si mesmo’ (Pondé,  2014, p. 47).

O que parece estar acontecendo é que, com a secularização, a experiência religiosa contemporânea se horizontalizou muito mais do que se verticalizou, voltando-se enfaticamente para o social, em detrimento do espiritual. As consequências dessa situação são patentes: frieza espiritual, desconhecimento de Deus, desamparo de si mesmo, perda da compaixão e da empatia, impiedade e superficialidade relacional, o que se apresenta como uma tremenda contradição.

Compreende-se, dessa forma, que a interioridade precisa ser resgatada, enfatizada e aprofundada na experiência religiosa atual. Talvez o ideal para uma igreja artesanal seja um ponto de equilíbrio entre o ascetismo dos monges do deserto (Nouwen, 2012) e o ascetismo intramundano (Weber, 1997), o que proporcionaria uma espiritualidade introspectiva, que valoriza os momentos de solitude, mas que seja socialmente engajada ao mesmo tempo. É necessário desenvolver uma espiritualidade que proporcione às pessoas intimidade com Deus, mas que não retire o homem da história e o permita viver integralmente, radicalmente e encarnadamente a sua humanidade (Menezes, 2013).

Um referencial muito interessante para este tipo de espiritualidade é encontrado na famosa obra O Reino de Deus Está em Vós, do escritor cristão russo Leon Tolstoi, que no Século XIX já percebia a superficialidade das tendências religiosas de então e conclamava a todos a buscarem a profundidade da experiência espiritual cristã, confrontando-a com o momento histórico pelo qual passava a Rússia (Tolstoi, 1994).

2. O Cristocentrismo mediado pelas escrituras

A Pós-modernidade é um contexto marcado pelo antropocentrismo de viés subjetivo. Sem dúvida, o sujeito pós-moderno é visto como o centro da realidade. Entretanto, quando se fala em experiência religiosa, é necessário compreender que Deus, enquanto a Causa e o Fundamento de tudo e de todos, é o centro da espiritualidade, o que se manifesta hoje como contra-cultura (Fillebrown, apud Kohl & Barro, 2011). O conhecimento de Deus e a consequente relação desenvolvida entre a criatura e o Criador se dá, na perspectiva cristã, pela mediação de Jesus Cristo, o Deus-encarnado sacrificado na cruz para redimir os pecadores. O conhecimento do Plano de Deus, a História da Salvação (Heilsgeschichte), por sua vez, é revelado nas Escrituras Sagradas. Elas são a Palavra de Deus.

Praticamente todos os movimentos protestantes, reformados e evangélicos defenderam a primazia das Escrituras Sagradas em questões de fé e de ordem. Esse é um elemento importantíssimo na identidade evangélica, cuja teologia tem na Bíblia sua referência última, diferentemente da teologia romana que também reconhece e utiliza a tradição como referência central.

Entretanto, percebe-se que ao longo dos anos o princípio da centralidade das Escrituras (Sola Scriptura) foi sendo relativizado, corrompido e abandonado por muitas comunidades de fé. Outros elementos foram utilizados, tornando-se também norteadores da doutrina e da prática cristã. Muita subjetividade foi introduzida nos arraiais evangélicos. Muitos “achismos”, modismos, superstições, invencionices e tradições não-bíblicas convivem com o povo de Deus no dia a dia, alterando substancialmente a identidade cristã-evangélica, que hoje se aproxima em determinados momentos do catolicismo, noutros do espiritismo, e, de forma impressionante, das matrizes religiosas afro-brasileiras, em movimentos chamados por alguns de Pós-Pentecostalismo (Siepierski apud Valério, 2017).

O universo eclesiástico se aproximou também do mundo secularizado, parcialmente destituído da influência judaico-cristã. Isso explica o uso acentuado de manuais de autoajuda, do pensamento positivo, da psicologia, da administração e dos business magazines, que acabam por produzir certa secundarização da Bíblia na vida eclesiástica. É lógico que a igreja necessita dialogar com o mundo e o pensamento secular, mas relegar ao seu referencial maior um lugar secundário é um equívoco que traz inúmeras consequências, entre elas, o alto grau de sincretismo, relativismo e de perda de identidade das comunidades de fé. Caso bem comum no pós-pentecoslismo, cujos elementos protestantes presentes no pentecostalismo – cristocentricidade, biblicismo, união da fé com a ética – estão praticamente ausentes. Isso sugere que, se o pós-pentecostalismo se distancia do pentecostalismo, seu distanciamento do protestantismo histórico é ainda maior, rompendo com os princípios centrais da Reforma. O pós-pentecostalismo é genealogicamente protestante, mas não o é teologicamente (Siepierski, 1997).

Por este motivo, é importante re-centralizar Jesus Cristo e as Escrituras Sagradas na vida da igreja, trazendo novamente o Evangelho para o foco e a pessoa de Jesus Cristo para o epicentro da fé cristã. Jesus precisa ser seu critério último, pois não há verdadeiro Cristianismo sem ele (Küng apud Magalhães, 1996), e as Escrituras é que atestam sua historicidade e ensinos significativos, como bem apresenta Jo 5.39: “Vocês estudam cuidadosamente as escrituras, porque pensam que nelas vocês têm a vida eterna. E são as escrituras que testemunham a meu respeito”. Isso torna a Bíblia, a Palavra de Deus,  fundamental para o desenvolvimento da espiritualidade cristã e para a estruturação da igreja sobre bases sólidas, como ela mesma confirma:

Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as pratica é como um homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela não caiu, porque tinha seus alicerces na rocha. Mas quem ouve estas minhas palavras e não as pratica é como um insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi grande a sua queda (Mt 7.24-27).

 Tal firmeza encontrada pelo Cristianismo em Jesus Cristo e em sua Palavra, se devidamente conhecidos e seguidos, torna a igreja capaz de superar firmemente o momento de transição histórica, epistemológica e ética pelo qual a humanidade passa nesse início de século.

Centralizar  Cristo no Cristianismo significa possuir um referencial inabalável; colocar a Bíblia em seu devido lugar significa apreciá-la como documento fundante da fé cristã, como referencial histórico do Cristianismo primevo, como livro inspirativo e ético, mas acima de tudo como Palavra de Deus escrita (inspirada), que fala da Palavra de Deus Encarnada (revelada) (Barth apud Gibelini, 1998). Desta forma, eas Escrituras Sagradas devem ser consideradas nas diversas questões eclesiásticas, doutrinárias e éticas, influenciando poderosamente a mundividência e o modus vivendi cristãos numa comunidade artesanal!

3. O Entranhamento do Espírito Santo

O Espírito Santo é uma realidade na vida cristã. Entretanto, durante séculos foi tratado como uma espécie de “proscrito” na doutrina da Trindade, que sempre enfatizou o Pai e o Filho, dando pouco ou quase nenhuma ênfase ao Espírito (Magalhães, 2000). Milhares de páginas foram escritas na teologia cristã para falar de Iaweh, outras milhares para falar de Jesus Cristo e poucas linhas para falar do Paracletos!

No último século, entretanto, a igreja e a teologia redescobriram a importância da pessoa do Espírito Santo para a vida cristã. Seguindo esta tendência, acredita-se que é preciso superar o estranhamento do Espírito e buscar o seu entranhamento na vida da igreja (Monteiro, 2003). Não que Ele, o Espírito, estivesse ausente durante séculos, mas sua presença nem sempre foi devidamente percebida e oportunamente valorizada.

Para a fé cristã não há espiritualidade verdadeira e sadia sem a presença e ação do Espírito, pois Ele é o Consolador, o Ajudador, o Inspirador, o Iluminador, enfim, o Apoiador dos cristãos em sua peregrinação neste mundo. Ele é Deus presente em nós! Para o cristão frutificar é preciso o agir do Espírito; para evangelizar e pregar eficazmente, seu poder é necessário; para discernir a vontade do Pai e o caminho a seguir, a iluminação do Espírito é fundamental, pois somente com o seu auxílio há compreensão sadia das Escrituras Sagradas.

Se o desejo é ser uma igreja verdadeiramente valoriza o espiritual, o Espírito Santo precisa ser o protagonista da vida da comunidade de fé, estando entranhado na vida cristã individual, assim como na vida eclesiástica, conduzindo planos, decisões e ações, segundo a Palavra de Deus. Quanto mais entranhado o Espírito (Pneuma) estiver e mais sensíveis os cristãos forem à sua voz, mais a carne (sarx) e o mundo (kosmos) serão discernidos na vida e no ministério eclesiásticos, como bem apresentam as Escrituras:

Por isso digo: vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne. Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam. Mas, se vocês são guiados pelo Espírito, não estão debaixo da lei. (Gl 5.16-18)

Esse é um grande desafio, pois com a gigantesca secularização da igreja contemporânea, ser uma igreja conduzida pelo Espírito Santo, mediante a Palavra de Deus, chega a parecer um terrível anacronismo.

4. A Experiência dos dons espirituais na vida comunitária

Não é interesse desse artigo discutir a contemporaneidade ou não de todos os dons espirituais, principalmente dos chamados dons sobrenaturais, mas tão somente constatar a necessidade que a igreja possui de receber os charismas para ser edificada, viver o Evangelho, alcançar maturidade e poder cumprir sua missão. E isso é ponto pacífico.

Dons são capacitações ou potencializações dadas pelo Espírito (Grudem, 1999) com a finalidade de preparar a igreja para o desempenho ministerial. Eles são dados por Deus a quem Ele quer, embora haja uma orientação bíblica para que o cristão busque os melhores dons, como afirma 1 Co 12.31a: “Entretanto, busquem com dedicação os melhores dons”.

Há várias listas no Novo Testamento, que apontam para a existência de possivelmente 30 dons. Não há consenso quanto ao número, mas este artigo segue o trabalho de organização de Christian A. Schwarz. Para o autor alemão, os dons apresentados na Bíblia seriam os seguintes: aconselhamento (1 Ts 5.14), ajuda (1 Co 12.28), apóstolo (1 Co 12.28,29), celibato (1 Co 7.32-35), conhecimento (1 Co 13.2,8-10), contribuição (2 Co 8.2-5), criatividade artística (Ex 31.1-11), cura (1 Co 12.9,28-30), discernimento de espírito (1 Co 12.10), disposição para o sofrimento (1 Co 13.1-3), ensino (1 Co 12:28,29), estilo de vida simples (1 Co 13.3), evangelismo (Ef 4.11), expulsão de demônios (Lc 10.17-20), fé (1 Co 12.9), habilidade manual (At 9.3), hospitalidade (Rm 12.9-13), interpretação de línguas (1 Co 12.10), liderança (Rm 12.8), línguas (1 Co 12.10, 28-30), milagres (1 Co 12.10,28), misericórdia (Rm 12.4-8), missionário (1 Co 9.19-23), música (1 Co 14.26), oração (Tg 5.16-18), organização (1 Co 12. 28), pastor (Ef 4.11), profecia (1 Co 12.28,29), sabedoria (1 Co 12.7,8) e serviço (Rm 12.6,7) (Schwarz, 1999).   

É propósito deste artigo destacar que a igreja não pode ser ignorante quanto aos dons espirituais, como evidencia 1 Co 12.1: “Irmãos, quanto aos dons espirituais, não quero que vocês sejam ignorantes”, devendo buscá-los, desenvolvê-los e praticá-los. Uma igreja artesanal precisa desenvolver sua vivência edificadora e sua ação missionária a partir da ação dos dons ministrados pelo Espírito, cada qual fazendo o que melhor foi capacitado por Ele a realizar.

5. O Exercício dos ministérios bíblicos

            Uma das doutrinas mais significativas legadas pela Reforma Protestante é a do livre sacerdócio do crente. A ideia de que com a morte e ressurreição de Cristo o véu do templo foi rasgado, aponta para a superação do sistema sacerdotal, que faz com que hoje não haja mais necessidade de sacerdotes, mediadores, intermediários entre os homens e Deus, sendo Jesus Cristo único mediador entre ambos, como bem diz 1 Tm 2.5: “Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: o homem Cristo Jesus”. Por este motivo os pastores não são vistos como sacerdotes no meio evangélico, mas como profetas: não são mediadores, mas arautos da Palavra do Senhor!

Na verdade, a igreja é formada de múltiplos ministérios, surgidos pela manifestação dos dons concedidos pelo Espírito, como foi visto acima. Para cada dom espiritual há um ministério correspondente, e em alguns casos, para determinados conjuntos de dons há ministérios correlatos. É através destas manifestações que a igreja se organiza e se capacita para desempenhar a missão. Quem, por exemplo, possui o dom de misericórdia pode servir no ministério de ação social, quem possui o dom de ensino serve no ministério de educação, quem recebeu os dons de discernimento e exortação servirá no ministério de aconselhamento, e assim sucessivamente. Schwarz afirma que: “se os membros da igreja não descobrirem os seus dons e não os puserem em prática, a igreja não poderá esperar grande progresso em nenhuma área.” (Schwarz & Schalk, 1998, p.55) 

Essa troca constante de conhecimento, visões, capacidades e serviços promove a mutualidade da igreja, mostrando a necessidade de interdependência entre os membros (Schwarz, 1996), e, através dela, a edificação e amadurecimento do Corpo de Cristo. Cada qual fazendo o que mais sabe e o que faz de melhor produzirá o suprimento de necessidades e carências, transpondo lacunas para gerar a eficiência e eficácia da igreja. Se antes havia a compreensão de que alguns poucos sacerdotes intermediavam a relação entre Deus e os homens, hoje se entende que há milhões de ministros realizando a obra de Deus em todo o mundo, oferecendo o seu melhor a Deus para a sua honra e para sua glória!

Dessa forma, uma igreja artesanal experimenta profundamente a mutualidade, onde cada pessoa serve a outra, onde cada um faz o seu trabalho através da capacitação dada por Deus, exercendo mútua influência, ocupando o seu espaço, promovendo a edificação da igreja e levando-a ao cumprimento da missão!

6. A Dedicação ao estudo, ao ensino e à pregação da palavra de Deus

Não há igreja sadia sem estudo sério das Escrituras e seu correspondente e sistemático ensino. A Palavra de Deus precisa, portanto, ser cotidianamente lida e estudada. Para tal, necessário é que se reconheça a sua centralidade na vida da igreja, pois é mensagem inspirada, que revela Deus aos homens, sendo a regra de fé e de prática da comunidade cristã. Muitos livros podem ser relevantes na vida cristã, mas somente ela é imprescindível.

Em tempos hipermodernos há uma forte ênfase na questão da forma. Observa-se isso em todas as áreas, inclusive na religião. Mas o cristão não pode abrir mão do conteúdo. Por isso, as Escrituras devem ser lidas e profundamente estudadas pelo povo de Deus, fugindo daquela leitura de final de dia, quando já não se tem mais disposição e concentração para nada.

Deve-se incentivar a leitura bíblica devocional diária, onde cada pessoa separa tempo para ler e estudar as Escrituras, meditando sobre o seu significado, aplicando-o ao cotidiano. Existe algo mais simples e artesanal na vida cristã do que isso? Existe algo mais salutar para a vida espiritual do que os momentos na presença de Jesus? É dessa naturalidade e profundidade bíblicas, que se contrapõe a toda superficialidade e artificialidade contemporâneas, que a igreja atual necessita.  

Paralelamente ao estudo pessoal, deve haver o ensino coletivo e sistemático da mensagem bíblica. A igreja precisa focar no ensino grupal das Escrituras, com destinação de tempo para que tal finalidade seja realizada. No estudo comunitário a mensagem deve ser destrinchada e aprofundada, para que problematizações sejam feitas sobre o texto bíblico, dúvidas sejam tiradas e a sistematização escriturística feita.

A mesma ênfase é requerida no culto coletivo. Que o mesmo não seja uma simples apropriação da cultura pop, mas tenha ênfase kerigmática, com foco na ministração da Palavra de Deus, usando-se vários modelos e formas de exposição, mas sempre baseados nas Escrituras, anunciando a vontade de Deus e denunciando o pecado, as injustiças e as mazelas do mundo. Que assim, uma mentalidade bíblica consistente seja desenvolvida na comunidade de fé, revigorando no seio da igreja artesanal a cosmovisão cristã (MacArthur, 2005), formando uma identidade cristã bem definida e uma consciência crítica capaz de dialogar com a realidade extra-eclesiástica.    

7. A Vivência cotidiana do evangelho

Uma das importantes reflexões feitas pelos cientistas da religião contemporâneos é a de que o homem pós-moderno não está preocupado apenas com discursos religiosos, mas com a sua praticidade, não apenas com a experiência religiosa privada, mas também com a pública. Isso é fruto da essência do pensamento pragmático pós-moderno, para o qual o homem se tornou menos interessado na verdade das idéias e discursos e mais preocupado com a performance (Lyotard, 1986) das pessoas e em seus relacionamentos. Enfim, o que interessa para o homem do Século XXI são os resultados! As pessoas querem ver o Evangelho na vida transformada dos cristãos.

Dessa forma, a ênfase da espiritualidade contemporânea está na experiência pessoal do Evangelho e não somente em sua logicidade, razoabilidade e sistematização da verdade (Castiñeira, 1997). O que o homem globalizado quer saber é se a religião cristã funciona de verdade. Por isso, o Evangelho e a evangelização atuais se tornaram muito mais relacionais. É através dos relacionamentos que ele é efetivamente comunicado e o homem pós-moderno evangelizado. É assim que homens e mulheres são levados a terem a experiência de fé, como diria Tillich, a experiência de se sentir possuído pelo incondicional (Tillich, 1985). Uma experiência transformadora, dotada de sentido e significado, capaz de alterar a vida das pessoas, mudando as estruturas internas individuais através da conversão e da santificação realizadas pelo Espirito Santo, e as relações sociais através de relacionamentos íntegros, verdadeiros e impactantes.

Uma igreja artesanal incentiva a vivência pessoal transformadora do Evangelho à luz das Escrituras, enfatizando o compartilhamento desta experiência de fé através dos relacionamentos saudáveis.

8. Desenvolvimento da evangelização, do discipulado e do serviço ao próximo

Nestes tempos hipermodernos muitas igrejas estão mais preocupada em crescer do que em evangelizar, esquecendo-se que não há crescimento numérico saudável sem uma evangelização consistente. Para muitos não há diferença se as pessoas estão aderindo a uma igreja ou se convertendo verdadeiramente a Jesus Cristo. Talvez isso ajude a explicar a secularização de muitas igrejas e a necessidade de mecanismos para converter os crentes, quer dizer, pessoas que já são membros de igrejas há muitos anos, mas que não possuem convicções de fé substanciais. Infelizmente, o foco de muitos líderes está nos números e não na autenticidade ou qualidade do fruto produzido.

Acredita-se que isso em parte seja conseqüência da antropocentrização religiosa, que reduz boa parte do fenômeno religioso à experiência e ação humanas. Um exemplo é a mudança de nomenclaturas ligadas à evangelização: se fala hoje muito mais em conquistar o mundo para Cristo, do que em ganhar pessoas para Jesus, como outrora diziam os missiólogos. Conquistar tem a ver com a ação humana, com relações de poder, com ganhar espaços, e pode até ter a ver com destruir o outro. Ganhar traduz mais a idéia de graça, de ser abençoado na semeadura, de que o crescimento da igreja, embora requeira a ação humana, sempre será fruto da ação e misericórdia de Deus!  

Uma das noções básicas de eclesiologia é a de que igreja é a comunidade dos salvos. Não é meramente uma organização filantrópica qualquer (Clinebell, 1987), mas uma comunidade viva, formada por filhos de Deus em processo de aperfeiçoamento. Ela deve levar as boas-novas a todas as pessoas, usando os métodos disponíveis, visando sempre à redenção dos pecadores. Deve orientar a evangelização para as necessidades, os questionamentos e as dificuldades das pessoas, apontando sempre para as respostas que o Evangelho traz, usando tal correlação, unida à construção de relacionamentos saudáveis, como meio para alcançar os outros (Schwarz, 1996).

Dessa forma, a igreja evangelizará, discipulará e batizará as pessoas e elas se tornarão compromissadas com Deus e com a sua causa, conscientes de que devem fidelidade incondicional a Deus e não a homens ou instituições.Cabe à igreja ensinar que Jesus sempre tem e sempre deverá ter o senhorio e a primazia na vida cristã individual e na vida coletiva da igreja.

Na igreja artesanal, ovelhas recém-nascidas devem ser levadas à maturidade para gerar outras ovelhas, discípulos neófitos devem ser capacitados para se tornarem mestres e discipuladores de outros mais novos, servos de Deus devem ser conscientizados que foram redimidos para servir, a Deus em primeiro lugar, mas também ao próximo.

Essas ações da igreja não podem ser cumpridas somente dentro de quatro paredes. É preciso sair, “ir para fora”, ir além. Evangelizar, discipular e servir implicam em reconhecer que a igreja não vive para si, para programas internos, para seus próprios projetos, para a comunidade intra-eclesiástica, para a recreação ou sociabilidade, somente. A igreja existe para a glória de Deus e para o serviço ao próximo, devendo ser agente de transformação do homem, da sociedade e da história (Cavalcanti, 1987), sempre debaixo da Graça de Deus.

9. O Culto inspirador, sem panacéias e sem teatralidade

Nos últimos 30 anos observa-se, especialmente entre os jovens, o estabelecimento de uma cultura pop que vem marcando suas vidas, músicas, expressões, programações, etc. A mesma se alastrou por todo o Ocidente através da Globalização, estando presente nos diversos eventos freqüentados por esta faixa etária, inclusive nas igrejas. Não obstante às igrejas não serem formadas somente por jovens, muitas aderiram plenamente à cultura pop, desenvolvendo liturgias mais movimentadas, com auditórios com luzes apagadas e púlpitos (palcos?) iluminados, música mais alta, mais instrumentos musicais, uso de palmas, de coreografias, mais teatralidade, mais mensagens visuais, etc. Às vezes, o som é tão alto e a movimentação é tão intensa que parece ser necessário muito barulho e bastante movimento para calar a voz que vem do coração. Entretanto, tudo isso feito à revelia do desconforto de muitos outros jovens e adultos que não se comprazem deste padrão, e, especialmente, dos idosos, que são os que mais sentem as mudanças, principalmente, o som alto, a movimentação excessiva e a iluminação inadequada.

Embora não seja interesse entrar na discussão específica da estética do culto, a igreja artesanal tem como proposta um culto mais simples, mais enxuto, e, especialmente, mais inspirador. Não se fala aqui, entretanto, de acabar com a alegria e vivacidade de um culto. Schwarz, pesquisador do tema crescimento de igrejas, afirma que segundo suas pesquisas o elemento mais importante para a vida dos participantes de um culto na atualidade é se ele é inspirador. Se for inspirador, o culto promoverá edificação, bem-estar, integração e adoração. E mais, o adorador voltará para adorar em outras ocasiões (Schwarz, 1996).

Dessa forma, o culto deve ser um conjunto de ações voltadas para a adoração a Deus, ligadas a um tema geral e a objetivos específicos. Devem fazer parte dele: oração, leitura das escrituras, louvor, mensagem bíblica e dedicação. Podem fazer parte das liturgias: hinos, cânticos, mensagens musicais, mensagens teatrais, projeções, contrição, consagração, apelo, bênçãos, comunhão, etc. Tudo com sobriedade e sem exageros.   

Uma das propostas desse artigo, entretanto, é de que haja nos cultos coletivos menos show e mais adoração, menos movimento e mais reflexão, menos barulho e mais atenção, menos retórica e mais edificação, menos auto-ajuda e mais Bíblia, menos performance e mais consagração, menos panacéias e mais objetividade, menos teatralidade e mais verdade, menos festa e mais culto, menos complexidade e mais simplicidade.

Simplicidade, aliás, que é um ponto fundamental para a igreja artesanal. O teólogo Chuck Smith afirma que um dos elementos mais importantes para a espiritualidade evangélica e para construção da fé cristã pós-moderna é a simplicidade (Smith apud Fillebrown, 2011). Aliás, C. S. Lewis falou sobre a importância da pureza e simplicidade do Evangelho muito antes das discussões sobre a Pós-Modernidade (Lewis, 2009).

10. Os Relacionamentos sadios, profundos e íntegros

Há um interesse especial pelo tema das relações humanas na atualidade. Isso porque as relações no mundo hipermoderno se diluíram, se fragmentaram e se superficializaram. Fala-se muito de relações utilitárias, onde um dos sujeitos é reificado e transformado em coisa, em objeto (Buber, 1979), de relações/conexões, ou seja, frágeis e superficiais, incapazes de suportar as pressões da realidade atual (Bauman, 2004), do hiperindividualismo, isto é, a dificuldade que o sujeito contemporâneo possui de fazer parte efetiva de grupos (Lipovetsky & Serroy, 2011) e da privatização, que traz a idéia de que há áreas na vida pessoal que não dizem respeito às outras pessoas, afetando a noção de comunidade (Amorese, 1998).

Diante desse quadro, a igreja artesanal precisa fazer uma opção pelo aprofundamento relacional humano, enquanto desdobramento do relacionamento com Deus, entendendo ser esse exatamente um dos maiores diferenciais da espiritualidade cristã. Para que os relacionamentos sejam marcantemente cristãos, a Bíblia deve nortear a formação de padrões relacionais do povo de Deus.

Apresentam-se abaixo alguns princípios bíblicos capazes de melhorar as relações humanas, tornando-as mais sadias, profundas e íntegras:

10.1. Amar um ao outro.

O apóstolo Paulo afirma em Rm 12.10a: “Amai-vos cordialmente uns aos outros, com amor fraternal”.

O amor é o princípio cristão da excelência. Mas, infelizmente, muitos confundem amar com usar e esse é um erro muito pernicioso para as relações (BUBER, 1979). Amar implica em querer o bem do outro, em entregar-se ao outro e pelo outro. Foi assim que Deus amou a humanidade e é dessa forma que Ele espera que cada um ame o seu próximo. Schwarz afirma que “o amor de verdade dá à igreja um brilho produzido por Deus” (Schwarz, 1996, p.36). Quando se ama efetivamente superam-se as relações utilitárias, a superficialidade relacional e o hiperindividualismo. As relações eclesiásticas se tornam melhores e mais profundas.

10.2. Aceitar um ao outro.

Está escrito em Rm 15.7: “Portanto, recebei-vos uns aos outros, como também Cristo nos recebeu para a glória de Deus.”

Muitas vezes convive-se com pessoas, mas não se aceita o seu jeito de ser, suas limitações e potencialidades. Isso dificulta o aprofundamento relacional. Na verdade ninguém é perfeito e todas as pessoas possuem limites. Por isso, deve-se incentivar as pessoas a exercitarem a tolerância e aceitarem o outros, apesar do que elas são, aceitá-las assim como Cristo as aceitou. A Bíblia diz em Ef 2.14: “Pois ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um e destruiu a barreira, o muro de inimizade”. Jesus já derrubou as paredes que separavam as pessoas e destruiu toda inimizade que havia. Em Cristo a comunhão se tornou possível, e isso perpassa pela questão da aceitação mútua.

10.3. Saudar um ao outro.

Existe em Rm 16.16 a afirmação: “Saudai-vos uns aos outros com ósculo santo.”

Essa era a prática na igreja primitiva: os irmãos se saudarem com um beijo. O importante não é destacar a forma da saudação, mas a saudação em si. Saudar o outro, além de ser educado, tem um grande poder psicológico e terapêutico, pois implica em se reconhece a existência do outro. Dessa forma, o outro se sente percebido, recebido e valorizado. É muito difícil viver num mundo onde as pessoas são reduzidas a números, a coisas, sendo marcadas pela insignificância. Não deve ser assim na vida eclesiástica.

10.4. Ter cuidado um pelo outro.

Paulo atesta em 1 Co 12.25: “Para que não haja divisão no corpo, mas antes tenham os membros igual cuidado uns pelos outros.”

Vive-se numa sociedade extremamente individualista e competitiva. Às vezes permite-se que esse estilo de vida penetre nas casas e nas igrejas e o resultado disso é o descompromisso com o bem do outro. É preciso resgatar os sensos de pertencimento e de coletividade. Só assim alguém conseguirá cuidar do outros, demonstrar mais interesse e compartilhar, de tal maneira que o espírito cooperativo seja desenvolvido, contribuindo para a edificação das pessoas e do corpo de Cristo.

10.5. Não consumir (destruir) um ao outro.

O apóstolo Paulo afirma em Gl 5.15: “Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede não vos consumais uns aos outros.”

As relações cristãs precisam ser boas, saudáveis e harmoniosas, se o desejo é o crescimento pessoal e da comunidade eclesiástica. Assim, é preciso crescer juntos, o que requer o aprofundamento da arte da convivência e do desejo de lutar uns pelo crescimento dos outros. Na abordagem paulina há evidências de sérios problemas relacionais na igreja da Galácia, assim como na igreja em Corinto. Por isso incentiva os irmãos em Cristo a se entenderem e a superarem as desavenças. Intrigas e dissensões precisam ser vencidas com diálogo e tolerância para com as diferenças. A harmonia e a paz são sempre alvos na igreja.

10.6. Levar as cargas uns dos outros.

Em Gl 6.2 se lê: “Levai as cargas uns dos outros, e assim estareis cumprindo a Lei de Cristo.”

Há momentos na vida nos quais é preciso desenvolver relações de ajuda. Esse é um tema muito abordado na psicologia atual, embora a Bíblia já o apresente há dois mil anos. Podem-se tornar os sofrimentos dos outros menores quando se ajuda o próximo a carregar as suas cargas. Os sofrimentos das pessoas podem ser amenizados, se outros estiverem presentes nas lutas e na dor, compartilhando as cargas alheias.

É o mesmo Paulo que afirma:

Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda consolação, que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos consolados de Deus (2 Co 1:3,4).

Quem já sofreu e superou suas lutas está habilitado a socorrer quem sente a mesma dor no presente. A presença de alguém confiável nas tribulações pode ajudar muito, aliviando as cargas, promovendo esperança e renovando as forças.

10.7. Perdoar um ao outro.

A Bíblia diz em Ef 4.32: “Antes sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo.”

O perdão é uma ação de grande relevância espiritual, sendo fruto da ação de Deus sobre a vida das pessoas. Para que aconteça é necessário deixar Deus agir na vida, conscientizando-se que todos são pecadores que precisam de perdão, inclusive o próprio perdoador.  É importante entender que o perdão é um mandamento dado por Deus a todos os seus servos (Mt 6.12-15). Não é uma mera escolha. Não é uma simples possibilidade. Quem não perdoa está pecando, o que compromete a comunhão com Deus.

10.8. Não mentir um ao outro.

O Novo Testamento afirma: “Pelo que deixai a mentira e falai a verdade cada um com o seu próximo.” (Ef 4.25).

A mentira sempre existiu, mas infelizmente, vem se tornando culturalmente aceita, tolerada e incentivada. Vivem-se tempos onde a mitomania, a mania de mentir, se alastrou pelas cidades, países e atingiu o mundo todo. Atingiu todas as esferas: dos mais altos escalões governamentais e corporativos, às pessoas mais simples. Por isso, a mentira deve ser evitada na vida comunitária cristã e a verdade precisa ser dita sempre, mesmo que muitas vezes com bastante cuidado para não machucar as pessoas mais frágeis. Ninguém deve usar a verdade para agredir o outro, mas sempre para ajudá-lo. Por isso, a verdade deve ser dita em amor. 

10.9. Encorajar um ao outro.

Em 1 Ts 5.11 se lê: “Pelo que exortai-vos uns aos outros...”.

Dizem que uma das características dos homens e mulheres contemporâneos é a ausência de coragem. Por isso, ela se torna uma virtude muito importante para o mundo hodierno (Tillich, 1976). Neste sentido, homens e mulheres cristãos precisam ser encorajados constantemente à prática do bem, da justiça, da verdade, do amor, etc. Encorajados através de palavras e do exemplo. Se assim acontecer, muitos serão impulsionados a deixar a vivência medíocre em busca da excelência cristã.

10.10. Orar um pelo outro.

Em Tg 5.16 está escrito: “... Orai uns pelos outros...”.

A oração é um poderoso instrumento concedido por Deus aos seus servos. Ao orar, deve-se fazê-lo pelos queridos, pelos amigos, pelos familiares, mas até mesmo pelos perseguidores (Mt 5.44). Primeiro, orando com gratidão, o que revela um espírito humilde e quebrantado. É importante agradecer por tudo: por pessoas, situações, vitórias e também pelas dificuldades, pois através delas é possível ter o caráter moldado e o temperamento aperfeiçoado. É preciso, também, valorizar a intercessão durante a oração. Interceder pelas pessoas que passam pelo caminho trilhado, pelas circunstâncias da vida, pelas adversidades. Não existe acaso. Ore, apresentando vidas, problemas, dificuldades, planos e projetos. Tudo deve ser apresentado diante de Deus. Ele tem todo o poder, por isso Paulo incentivou os cristãos a orarem sempre (1 Ts 5.17).

Estes são alguns exemplos de princípios bíblicos que ajudam a fortalecer os relacionamentos cristãos. Dezenas de outros existem, devem ser conhecidos e colocados em prática, o que melhorará exponenciamente as difíceis relações humanas. 

Conclusão

A industrialização moderna promoveu o surgimento das metrópoles e muitas pessoas, em busca de uma vida melhor, se mudaram para os grandes centros urbanos. Infelizmente, com o passar dos anos os grandes centros apresentaram, além de uma vida melhor em determinados aspectos, inúmeros problemas ligados à grande concentração populacional e ao estilo de vida contemporâneo, caracterizado pelo ativismo, violência, grandes distâncias, perda de tempo com o transporte, superficialidade relacional e foco na materialidade da vida. Hoje, em pleno mundo globalizado, muitos fazem o movimento contrário, deixando os grandes centros e voltando para cidades menores, ou mesmo lugarejos, em busca de uma existência com mais qualidade: vida mais tranqüila, estável, segura, simples, focada no que realmente importa, valorizando a família, os amigos e a espiritualidade. Neste retorno redescobriram axiomas outrora perdidos com a modernização.

É nessa cultura industrial, ou pós-industrial (Kumar, 1997), cansada da produção em série que muitos buscam uma produção artesanal, manufaturada, simples, criativa, singular, natural, de qualidade e focada no essencial. Muitos acreditam que essa tendência deva atingir, inclusive, a religião, a igreja e a espiritualidade. Cansados da mesmice estrutural e da parafernalha tecnológica, complexa, massificada e pop que envolvem a vida de muitas igrejas no mundo hipermoderno, muitos estão optando por um retorno à simplicidade. Querem uma espiritualidade mais pessoal, uma comunidade de fé diferenciada, e, ao mesmo tempo, uma experiência religiosa mais profunda e substancial, que atinja todas as esferas da vida humana, interiores e exteriores. Essa é a idéia por trás da Igreja Artesanal: a busca por um Evangelho mais puro e mais simples, focado no que realmente importa e experimentado numa comunidade de fé menos industrializada e mercantilizada. É disso que este artigo fala! Talvez seja isso que você também esteja procurando!

 

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[1] Membro da Fraternidad Teologica Latinoamericana  (FTL-B). Graduado em Teologia (STBNB e FTSA), Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior (ITOP) e Pós-Graduando em Telemática (IFTO). Professor de Teologia no STBT, SETA e STBG. Pastor da Igreja Batista Metropolitana em Palmas – TO.

 

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