UMA IGREJA
ARTESANAL: BUSCANDO COM SIMPLICIDADE O QUE REALMENTE IMPORTA
Diogo Souza Magalhães[1]
RESUMO
O presente artigo constata a produção em série de
modelos eclesiásticos no mundo hipermoderno, por influência da visão de mercado
sobre a religião, o que tem massificado as comunidades de fé evangélicas,
tornando-as semelhantes, pesadas,
complexas e onerosas. Reconhece a necessidade de estabelecer igrejas
artesanais, focadas na simplicidade do Evangelho e na singularidade da
estrutura eclesiástica, desenvolvidas à luz de cada contexto e possibilidades,
objetivando mais o conteúdo do que a forma eclesiástica. Aponta
para a urgência de desenvolvimento de perspectiva de espiritualidade bíblica, simples
e alternativa, voltada para o aprofundamento da experiência interior e seu
desdobramento nas relações humanas.
PALAVRAS-CHAVE
Igreja; Espiritualidade; Hipermodernidade; Artesanal; Simplicidade.
ABSTRACT
This article
examines the mass production of
ecclesiastical models in the hypermodern world, spurred by the application of
the market view to religion, which impels evangelical faith communities,
shaping them into virtually uniform, ponderous,
complex and expensive entities. This evaluation highlights the need for
artisanal churches, focused on the simplicity of the Gospel, which includes
tailoring ecclesiastical structure to adapt to each specific context, with the
goal of focusing more on the content than the churches form. It points to the
urgency of developing a simpler and alternative biblical spirituality perspective,
the deepening of inner faith experience and its unfolding in human
relations.
KEYWORDS
Church; Spirituality; Hypermodernity; Artisanal; Simplicity.
O mundo contemporâneo é marcado pela
existência de um sistema de produção em larga escala. Produzem-se coisas,
instituições, estruturas, sistemas, ideias, valores, hábitos em série para
suprir o mercado ávido por consumo.
A
produção em larga escala surgiu com a Revolução Industrial no Século XVIII, na
Inglaterra, quando a máquina substituiu parcialmente a mão de obra humana e o
trabalho especializado se tornou padrão, aumentando a capacidade de produção,
intensificando as relações comerciais e estendendo o poder do mercado sobre a
sociedade. Com o advento do Século XX, desenvolveu-se a produção em série, primeiramente na indústria automobilística
norte-americana, que criou a linha de produção, intensificou a especialização e
estruturou a linha de montagem, aumentando ainda mais a capacidade da produção
industrial, fazendo o setor secundário da economia bater sucessivamente seus
recordes. O que parecia ser o ápice de um modelo mostrou-se defasado, quando no
Japão foi criada na segunda metade do Século XX a produção enxuta, que aumentou a robotização industrial, diminuindo
consideravelmente a participação humana no processo de produção, enxugando os
custos e os estoques para baratear o preço do produto final e aumentar a
capacidade de produção.
Com
o fortalecimento do processo industrial aumentou-se a produção, intensificou-se
o comércio, fomentou-se o consumo, desenvolveu-se o marketing, estabeleceu-se o
consumismo. Houve um boom desse
modelo de produção, expandindo seus tentáculos pelos quatro cantos do mundo,
favorecendo, inclusive, o desenvolvimento da globalização. Produtos foram
feitos em larga escala, seguindo determinadas tendências, técnicas e materiais.
Conceitos foram aprimorados e superados em menos tempo. O modelo se superou
continuamente, batendo sucessivamente seus números anteriores. Com o passar dos anos, entretanto,
observou-se que este modelo que primou a princípio não apenas pela quantidade, mas
pela qualidade, criatividade e superação contínua, começou a exercer certa ditadura no consumo, oferecendo sua
volumosa produção de materiais nem sempre de boa qualidade, diga-se de
passagem, ao mercado, às vezes sem muita criatividade e sem personalidade, caso comum no Século XXI,
com a disseminação dos produtos popularmente apelidados no Brasil de ching ling, ou do Paraguai.
Essa
constatação fez com que muitas pessoas deixassem (ou diminuíssem) o consumo de
produtos industrializados e buscassem novamente os produtos artesanais, nos
quais encontraram mais originalidade, maior criatividade, materiais
alternativos, diferenciados, seguindo a política ambiental, enfim, produtos não
massificados. Isso aconteceu, em especial, com pessoas que resolveram abandonar
a superficialidade existencial do mundo hipermoderno e se lançaram em busca de uma
reflexão mais profunda acerca da realidade, se tornando dotadas de maior senso
crítico e do desejo de viver um estilo de vida menos massificado e consumista,
mais natural e alternativo, fugindo dos modismos e padrões dos monopólios
industriais, mercantis, institucionais, culturais e religiosos do mundo
globalizado.
Afirma-se
institucionais, culturais e religiosos porque o modelo industrial de produção
em massa entranhou-se de tal forma na cultura Ocidental, que se tornou parte
dela, influenciando não apenas a produção material, mas também a imaterial,
promovendo o aparecimento da indústria
cultural (Adorno, 2003), fomentando o mercado institucional e até mesmo o
mercado religioso (Lipovetsky & Serroy, 2011). Na atualidade, tudo é
produzido em larga escala, desde carros, computadores, canetas, mesas, etc.,
até ideias, valores, modelos, programas, estruturas, restando pouquíssimas
opções para quem não está alinhado a essa tendência de viver a vida e aos
modismos propostos pela globalização.
Quando
se fala na religiosidade atual, especialmente, percebe-se que a mesma vem
sofrendo poderosa influência da cultura-mundo, que mercantilizou a fé, tornando-a
mais um produto comercial. Lipovetsky, um dos maiores pesquisadores sobre o
assunto, comenta a subjugação da religião pela cultura do mercado, ao dizer que...
A
Igreja, o socialismo, o Estado republicano, a nação, a escola, as culturas de
classe, mais nada disso constitui contrapesos verdadeiros ao reinado absoluto
do mercado. Esses sistemas perduram, mas são cada vez mais redefinidos,
reestruturados, invadidos pelas lógicas de concorrência, competição e
desempenho que se impõem como a matriz, a pedra angular da organização de nosso
universo cultural. O hipercapitalismo revela a nova onipresença e onipotência
do Homo Oeconomicus, a extensão do
modelo do mercado às esferas antigamente fora do domínio mercantil. (Lipovetsky
& Serroy, 2011, p. 38)
Para aumentar seu poder de atratividade social
a cultura-mundo massificou o modelo religioso, ajustando sua imagem à da
cultura pop, sua administração ao
modelo empresarial, seus objetivos aos do terceiro setor (diversão,
beneficência, comércio) e sua espiritualidade a certo imanentismo
intra-mundano. Influenciada pela cultura
de mercado global, a religião perdeu o seu foco, como afirmou ironicamente o
filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, quando denunciou a superficialidade e
falta de propósito da religiosidade atual: “as religiões correm o risco de
virar uma mistura de Hopi Hari, fanatismo brega e dieta balanceada” (Pondé,
2012, p. 121).
Além
disso, a cultura-mundo diminuiu o peso
que a religião possui, por lidar com a interioridade, moralizando, relativizando
e destruindo conceitos e axiomas, como bem disse Pondé: “(o) marketing moral
(...) simplifica a vida de uma forma como nem o puritanismo fez, porque este se
baseava no medo do ‘pecado em mim’, e os puros de hoje não têm pecados.” (Pondé,
2014, p. 95). Por isso, as igrejas atuais focam mais na estrutura, nas
programações, nos números, no lazer, do que na subjetividade e no mundo
interior das pessoas. Sem dúvida alguma, o foco da religião hipermoderna é a
forma, a estrutura, e não o conteúdo, o que tem como consequências a superficialidade,
a perda de identidade, o estranhamento da transcendência e o desenvolvimento de
uma gaiola imanentista.
É
a proposta deste artigo, apontar para a realidade de que não deve haver um modelo
único ou supremo de igreja na atualidade (Kimball, 2008) determinado pelo
mercado globalizado, mas que é possível estipular paradigmas eclesiásticos que
sirvam de referenciais para que se possa ser igrejas efetivamente cristãs
(conteúdo), mesmo que aparentemente diferentes (forma), dando lugar a certa
diversidade eclesiológica. Neste caso, aponta-se para a urgência de se
estabelecer modelos religiosos mais simples, artesanais e alternativos voltados
para a ênfase na experiência interior (sem abandonar a exterior e o aspecto
relacional), marcados pelo cristocentrismo mediado pelas Escrituras, pelo entranhamento do Espírito Santo, pela
manifestação de dons e pelo exercício de ministérios, pela vivência do
Evangelho, pelo estudo, ensino e pregação da Palavra de Deus, pela
evangelização, discipulado e pelo fazer o bem, assim como pelo culto sem panacéias
e teatralidade, baseada na vivência relacional íntegra. Enfim, a proposta é
buscar uma expressão religiosa não massificada, diversa e focada numa
espiritualidade profunda.
Eis,
a seguir, algumas características de uma igreja artesanal:
1. A Ênfase no aprofundamento da
vida interior
O
filósofo francês Gilles Lipovetsky compreende que o atual momento histórico,
chamada por ele de Era do Vazio, se tornou marcado por características como
solidão, superficialidade, ausência de sentimentos, apatia, indiferença,
perturbações narcísicas e dessubstancialização do sujeito (Lipovetsky, 2005), o
que aponta para o esvaziamento pessoal e para a desorganização interior,
repercutindo diretamente nas relações sociais e no desenvolvimento de uma
afetividade sadia.
Pondé,
a partir de outras reflexões chega à mesma conclusão, ao afirmar que a
sociedade atual perdeu grande parte da profundidade existencial e de pensamento
por dois motivos: a secularização e o desenvolvimento da religiosidade oriental
no Ocidente, que não enfatiza os conceitos de pecado e de graça, comuns
à religiosidade judaico-cristã. Além disso, apresenta o crescimento das
tendências religiosas lights dentro
do Cristianismo contemporâneo, muito mais preocupadas com performances, programas e diversões, do que com a busca da interioridade
e o aprofundamento da experiência do Transcendente (Pondé, 2012).
Por
outro lado, o mesmo autor aponta para o fato de que uma espiritualidade sadia
implica no confronto com a condição humana, que requer autoconhecimento,
introspecção e silêncio...
A
verdadeira espiritualidade trilha aquele caminho que os pietistas alemães
(luteranos que odiavam o mundo e viam o pecado em si mesmos e no mundo o tempo
todo e, por isso, faziam silêncio para acalmar a Criação do ruído do mal)
chamavam de ‘inferno do conhecimento de si mesmo’ (Pondé, 2014, p. 47).
O
que parece estar acontecendo é que, com a secularização, a experiência religiosa
contemporânea se horizontalizou muito
mais do que se verticalizou,
voltando-se enfaticamente para o social, em detrimento do espiritual. As
consequências dessa situação são patentes: frieza espiritual, desconhecimento
de Deus, desamparo de si mesmo, perda da compaixão e da empatia, impiedade e
superficialidade relacional, o que se apresenta como uma tremenda contradição.
Compreende-se,
dessa forma, que a interioridade precisa ser resgatada, enfatizada e
aprofundada na experiência religiosa atual. Talvez o ideal para uma igreja
artesanal seja um ponto de equilíbrio entre o ascetismo dos monges do deserto (Nouwen,
2012) e o ascetismo intramundano (Weber, 1997), o que proporcionaria uma espiritualidade
introspectiva, que valoriza os momentos de solitude, mas que seja socialmente
engajada ao mesmo tempo. É necessário desenvolver uma espiritualidade que
proporcione às pessoas intimidade com Deus, mas que não retire o homem da
história e o permita viver integralmente, radicalmente e encarnadamente a sua
humanidade (Menezes, 2013).
Um
referencial muito interessante para este tipo
de espiritualidade é encontrado na famosa obra O Reino de Deus Está em Vós, do escritor cristão russo Leon
Tolstoi, que no Século XIX já percebia a superficialidade das tendências religiosas
de então e conclamava a todos a buscarem a profundidade da experiência
espiritual cristã, confrontando-a com o momento histórico pelo qual passava a
Rússia (Tolstoi, 1994).
2. O Cristocentrismo mediado pelas escrituras
A
Pós-modernidade é um contexto marcado pelo antropocentrismo de viés subjetivo.
Sem dúvida, o sujeito pós-moderno é visto como o centro da realidade.
Entretanto, quando se fala em experiência religiosa, é necessário compreender
que Deus, enquanto a Causa e o Fundamento de tudo e de todos, é o centro da
espiritualidade, o que se manifesta hoje como contra-cultura (Fillebrown, apud Kohl & Barro, 2011). O
conhecimento de Deus e a consequente relação desenvolvida entre a criatura e o
Criador se dá, na perspectiva cristã, pela mediação de Jesus Cristo, o
Deus-encarnado sacrificado na cruz para redimir os pecadores. O conhecimento do
Plano de Deus, a História da Salvação (Heilsgeschichte), por sua vez, é
revelado nas Escrituras Sagradas. Elas são a Palavra de Deus.
Praticamente
todos os movimentos protestantes, reformados e evangélicos defenderam a
primazia das Escrituras Sagradas em questões de fé e de ordem. Esse é um
elemento importantíssimo na identidade evangélica, cuja teologia tem na Bíblia
sua referência última, diferentemente da teologia romana que também reconhece e
utiliza a tradição como referência central.
Entretanto,
percebe-se que ao longo dos anos o princípio da centralidade das Escrituras (Sola Scriptura) foi sendo relativizado,
corrompido e abandonado por muitas comunidades de fé. Outros elementos foram utilizados,
tornando-se também norteadores da doutrina e da prática cristã. Muita
subjetividade foi introduzida nos arraiais evangélicos. Muitos “achismos”,
modismos, superstições, invencionices e tradições não-bíblicas convivem com o
povo de Deus no dia a dia, alterando substancialmente a identidade
cristã-evangélica, que hoje se aproxima em determinados momentos do
catolicismo, noutros do espiritismo, e, de forma impressionante, das matrizes
religiosas afro-brasileiras, em movimentos chamados por alguns de Pós-Pentecostalismo (Siepierski apud Valério, 2017).
O
universo eclesiástico se aproximou também do mundo secularizado, parcialmente
destituído da influência judaico-cristã. Isso explica o uso acentuado de
manuais de autoajuda, do pensamento positivo, da psicologia, da administração e
dos business magazines, que acabam
por produzir certa secundarização da Bíblia na vida eclesiástica. É lógico que
a igreja necessita dialogar com o mundo e o pensamento secular, mas relegar ao
seu referencial maior um lugar secundário é um equívoco que traz inúmeras
consequências, entre elas, o alto grau de sincretismo, relativismo e de perda
de identidade das comunidades de fé. Caso bem comum no pós-pentecoslismo, cujos
elementos protestantes presentes no pentecostalismo – cristocentricidade,
biblicismo, união da fé com a ética – estão praticamente ausentes. Isso sugere
que, se o pós-pentecostalismo se distancia do pentecostalismo, seu
distanciamento do protestantismo histórico é ainda maior, rompendo com os
princípios centrais da Reforma. O pós-pentecostalismo é genealogicamente
protestante, mas não o é teologicamente (Siepierski, 1997).
Por
este motivo, é importante re-centralizar Jesus Cristo e as Escrituras Sagradas
na vida da igreja, trazendo novamente o Evangelho para o foco e a pessoa de
Jesus Cristo para o epicentro da fé cristã. Jesus precisa ser seu critério
último, pois não há verdadeiro Cristianismo sem ele (Küng apud Magalhães, 1996), e as Escrituras é que atestam sua
historicidade e ensinos significativos, como bem apresenta Jo 5.39: “Vocês estudam cuidadosamente as escrituras,
porque pensam que nelas vocês têm a vida eterna. E são as escrituras que
testemunham a meu respeito”. Isso torna a Bíblia, a Palavra de Deus, fundamental para o desenvolvimento da
espiritualidade cristã e para a estruturação da igreja sobre bases sólidas,
como ela mesma confirma:
Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as
pratica é como um homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a
chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e
ela não caiu, porque tinha seus alicerces na rocha. Mas quem ouve estas minhas
palavras e não as pratica é como um insensato que construiu a sua casa sobre a
areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra
aquela casa, e ela caiu. E foi grande a sua queda (Mt 7.24-27).
Tal firmeza encontrada pelo Cristianismo em
Jesus Cristo e em sua Palavra, se devidamente conhecidos e seguidos, torna a
igreja capaz de superar firmemente o momento de transição histórica,
epistemológica e ética pelo qual a humanidade passa nesse início de século.
Centralizar
Cristo no Cristianismo significa possuir
um referencial inabalável; colocar a Bíblia em seu devido lugar significa
apreciá-la como documento fundante da fé cristã, como referencial histórico do
Cristianismo primevo, como livro inspirativo e ético, mas acima de tudo como
Palavra de Deus escrita (inspirada), que fala da Palavra de Deus Encarnada
(revelada) (Barth apud Gibelini, 1998).
Desta forma, eas Escrituras Sagradas devem ser consideradas nas diversas
questões eclesiásticas, doutrinárias e éticas, influenciando poderosamente a
mundividência e o modus vivendi
cristãos numa comunidade artesanal!
3. O Entranhamento do Espírito Santo
O
Espírito Santo é uma realidade na vida cristã. Entretanto, durante séculos foi
tratado como uma espécie de “proscrito” na doutrina da Trindade, que sempre enfatizou
o Pai e o Filho, dando pouco ou quase nenhuma ênfase ao Espírito (Magalhães, 2000). Milhares de páginas foram
escritas na teologia cristã para falar de Iaweh,
outras milhares para falar de Jesus Cristo e poucas linhas para falar do Paracletos!
No
último século, entretanto, a igreja e a teologia redescobriram a importância da
pessoa do Espírito Santo para a vida cristã. Seguindo esta tendência, acredita-se
que é preciso superar o estranhamento
do Espírito e buscar o seu entranhamento
na vida da igreja (Monteiro, 2003). Não que Ele, o Espírito, estivesse ausente
durante séculos, mas sua presença nem sempre foi devidamente percebida e oportunamente
valorizada.
Para
a fé cristã não há espiritualidade verdadeira e sadia sem a presença e ação do
Espírito, pois Ele é o Consolador, o Ajudador, o Inspirador, o Iluminador,
enfim, o Apoiador dos cristãos em sua peregrinação neste mundo. Ele é Deus
presente em nós! Para o cristão frutificar é preciso o agir do Espírito; para
evangelizar e pregar eficazmente, seu poder é necessário; para discernir a
vontade do Pai e o caminho a seguir, a iluminação do Espírito é fundamental,
pois somente com o seu auxílio há compreensão sadia das Escrituras Sagradas.
Se
o desejo é ser uma igreja verdadeiramente valoriza o espiritual, o Espírito Santo precisa ser o protagonista da vida da
comunidade de fé, estando entranhado na vida cristã individual, assim como na
vida eclesiástica, conduzindo planos, decisões e ações, segundo a Palavra de
Deus. Quanto mais entranhado o Espírito (Pneuma)
estiver e mais sensíveis os cristãos forem à sua voz, mais a carne (sarx) e o mundo (kosmos) serão discernidos na vida e no ministério eclesiásticos,
como bem apresentam as Escrituras:
Por isso digo: vivam
pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne. Pois a carne deseja o que é
contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em
conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam. Mas, se vocês são guiados pelo Espírito, não estão
debaixo da lei. (Gl
5.16-18)
Esse
é um grande desafio, pois com a gigantesca secularização da igreja
contemporânea, ser uma igreja conduzida pelo Espírito Santo, mediante a Palavra
de Deus, chega a parecer um terrível anacronismo.
4. A Experiência dos dons espirituais
na vida comunitária
Não é interesse desse artigo discutir a
contemporaneidade ou não de todos os
dons espirituais, principalmente dos chamados dons sobrenaturais, mas tão somente constatar a necessidade que a
igreja possui de receber os charismas
para ser edificada, viver o Evangelho, alcançar maturidade e poder cumprir sua
missão. E isso é ponto pacífico.
Dons
são capacitações ou potencializações dadas pelo Espírito (Grudem, 1999) com a
finalidade de preparar a igreja para o desempenho ministerial. Eles são dados
por Deus a quem Ele quer, embora haja uma orientação bíblica para que o cristão
busque os melhores dons, como afirma 1 Co 12.31a: “Entretanto, busquem com dedicação os melhores dons”.
Há
várias listas no Novo Testamento, que apontam para a existência de possivelmente
30 dons. Não há consenso quanto ao número, mas este artigo segue o trabalho de organização
de Christian A. Schwarz. Para o autor alemão, os dons apresentados na Bíblia seriam
os seguintes: aconselhamento (1 Ts 5.14), ajuda (1 Co 12.28), apóstolo (1 Co
12.28,29), celibato (1 Co 7.32-35), conhecimento (1 Co 13.2,8-10), contribuição
(2 Co 8.2-5), criatividade artística (Ex 31.1-11), cura (1 Co 12.9,28-30), discernimento
de espírito (1 Co 12.10), disposição para o sofrimento (1 Co 13.1-3), ensino (1
Co 12:28,29), estilo de vida simples (1 Co 13.3), evangelismo (Ef 4.11),
expulsão de demônios (Lc 10.17-20), fé (1 Co 12.9), habilidade manual (At 9.3),
hospitalidade (Rm 12.9-13), interpretação de línguas (1 Co 12.10), liderança
(Rm 12.8), línguas (1 Co 12.10, 28-30), milagres (1 Co 12.10,28), misericórdia
(Rm 12.4-8), missionário (1 Co 9.19-23), música (1 Co 14.26), oração (Tg
5.16-18), organização (1 Co 12. 28), pastor (Ef 4.11), profecia (1 Co 12.28,29),
sabedoria (1 Co 12.7,8) e serviço (Rm 12.6,7) (Schwarz, 1999).
É
propósito deste artigo destacar que a igreja não pode ser ignorante quanto aos
dons espirituais, como evidencia 1 Co 12.1: “Irmãos, quanto aos dons espirituais, não quero
que vocês sejam ignorantes”, devendo buscá-los, desenvolvê-los
e praticá-los. Uma igreja artesanal precisa desenvolver sua vivência
edificadora e sua ação missionária a partir da ação dos dons ministrados pelo
Espírito, cada qual fazendo o que melhor foi capacitado por Ele a realizar.
5. O Exercício dos ministérios
bíblicos
Uma das doutrinas mais significativas legadas pela
Reforma Protestante é a do livre
sacerdócio do crente. A ideia de que com a morte e ressurreição de Cristo o
véu do templo foi rasgado, aponta para a superação do sistema sacerdotal, que
faz com que hoje não haja mais necessidade de sacerdotes, mediadores, intermediários
entre os homens e Deus, sendo Jesus Cristo único mediador entre ambos, como bem
diz 1 Tm 2.5: “Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: o homem
Cristo Jesus”. Por este motivo os pastores não são vistos como
sacerdotes no meio evangélico, mas como profetas: não são mediadores, mas
arautos da Palavra do Senhor!
Na
verdade, a igreja é formada de múltiplos ministérios, surgidos pela manifestação
dos dons concedidos pelo Espírito, como foi visto acima. Para cada dom
espiritual há um ministério correspondente, e em alguns casos, para
determinados conjuntos de dons há ministérios correlatos. É através destas
manifestações que a igreja se organiza e se capacita para desempenhar a missão.
Quem, por exemplo, possui o dom de misericórdia pode servir no ministério de
ação social, quem possui o dom de ensino serve no ministério de educação, quem
recebeu os dons de discernimento e exortação servirá no ministério de
aconselhamento, e assim sucessivamente. Schwarz afirma que: “se os membros da
igreja não descobrirem os seus dons e não os puserem em prática, a igreja não
poderá esperar grande progresso em nenhuma área.” (Schwarz & Schalk, 1998,
p.55)
Essa
troca constante de conhecimento, visões, capacidades e serviços promove a
mutualidade da igreja, mostrando a necessidade de interdependência entre os
membros (Schwarz, 1996), e, através dela, a edificação e amadurecimento do
Corpo de Cristo. Cada qual fazendo o que mais sabe e o que faz de melhor
produzirá o suprimento de necessidades e carências, transpondo lacunas para
gerar a eficiência e eficácia da igreja. Se antes havia a compreensão de que alguns
poucos sacerdotes intermediavam a relação entre Deus e os homens, hoje se
entende que há milhões de ministros realizando a obra de Deus em todo o mundo,
oferecendo o seu melhor a Deus para a sua honra e para sua glória!
Dessa
forma, uma igreja artesanal experimenta profundamente a mutualidade, onde cada
pessoa serve a outra, onde cada um faz o seu trabalho através da capacitação
dada por Deus, exercendo mútua influência, ocupando o seu espaço, promovendo a
edificação da igreja e levando-a ao cumprimento da missão!
6. A Dedicação ao estudo, ao ensino
e à pregação da palavra de Deus
Não
há igreja sadia sem estudo sério das Escrituras e seu correspondente e
sistemático ensino. A Palavra de Deus precisa, portanto, ser cotidianamente
lida e estudada. Para tal, necessário é que se reconheça a sua centralidade na
vida da igreja, pois é mensagem inspirada, que revela Deus aos homens, sendo a
regra de fé e de prática da comunidade cristã. Muitos livros podem ser
relevantes na vida cristã, mas somente ela é imprescindível.
Em
tempos hipermodernos há uma forte ênfase na questão da forma. Observa-se isso
em todas as áreas, inclusive na religião. Mas o cristão não pode abrir mão do conteúdo.
Por isso, as Escrituras devem ser lidas e profundamente estudadas pelo povo de
Deus, fugindo daquela leitura de final de dia, quando já não se tem mais
disposição e concentração para nada.
Deve-se
incentivar a leitura bíblica devocional diária, onde cada pessoa separa tempo para
ler e estudar as Escrituras, meditando sobre o seu significado, aplicando-o ao
cotidiano. Existe algo mais simples e artesanal na vida cristã do que isso?
Existe algo mais salutar para a vida espiritual do que os momentos na presença de Jesus? É dessa naturalidade e
profundidade bíblicas, que se contrapõe a toda superficialidade e
artificialidade contemporâneas, que a igreja atual necessita.
Paralelamente
ao estudo pessoal, deve haver o ensino coletivo e sistemático da mensagem
bíblica. A igreja precisa focar no ensino grupal das Escrituras, com destinação
de tempo para que tal finalidade seja realizada. No estudo comunitário a
mensagem deve ser destrinchada e aprofundada, para que problematizações sejam
feitas sobre o texto bíblico, dúvidas sejam tiradas e a sistematização
escriturística feita.
A
mesma ênfase é requerida no culto coletivo. Que o mesmo não seja uma simples
apropriação da cultura pop, mas tenha
ênfase kerigmática, com foco na
ministração da Palavra de Deus, usando-se vários modelos e formas de exposição,
mas sempre baseados nas Escrituras, anunciando a vontade de Deus e denunciando o
pecado, as injustiças e as mazelas do mundo. Que assim, uma mentalidade bíblica
consistente seja desenvolvida na comunidade de fé, revigorando no seio da
igreja artesanal a cosmovisão cristã (MacArthur, 2005), formando uma identidade
cristã bem definida e uma consciência crítica capaz de dialogar com a realidade
extra-eclesiástica.
7. A Vivência cotidiana do evangelho
Uma
das importantes reflexões feitas pelos cientistas da religião contemporâneos é
a de que o homem pós-moderno não está preocupado apenas com discursos religiosos,
mas com a sua praticidade, não apenas com a experiência religiosa privada, mas
também com a pública. Isso é fruto da essência do pensamento pragmático pós-moderno,
para o qual o homem se tornou menos interessado na verdade das idéias e
discursos e mais preocupado com a performance
(Lyotard, 1986) das pessoas e em seus relacionamentos. Enfim, o que interessa para
o homem do Século XXI são os resultados! As pessoas querem ver o Evangelho na vida transformada dos cristãos.
Dessa
forma, a ênfase da espiritualidade contemporânea está na experiência pessoal do
Evangelho e não somente em sua logicidade, razoabilidade e sistematização da
verdade (Castiñeira, 1997). O que o homem globalizado quer saber é se a
religião cristã funciona de verdade. Por isso, o Evangelho e a evangelização
atuais se tornaram muito mais relacionais. É através dos relacionamentos que
ele é efetivamente comunicado e o homem pós-moderno evangelizado. É assim que
homens e mulheres são levados a terem a experiência de fé, como diria Tillich,
a experiência de se sentir possuído pelo incondicional (Tillich, 1985). Uma experiência transformadora, dotada de sentido e
significado, capaz de alterar a vida das pessoas, mudando as estruturas
internas individuais através da conversão e da santificação realizadas pelo
Espirito Santo, e as relações sociais através de relacionamentos íntegros,
verdadeiros e impactantes.
Uma
igreja artesanal incentiva a vivência pessoal transformadora do Evangelho à luz
das Escrituras, enfatizando o compartilhamento desta experiência de fé através
dos relacionamentos saudáveis.
8.
Desenvolvimento da evangelização, do discipulado e do serviço ao próximo
Nestes
tempos hipermodernos muitas igrejas estão mais preocupada em crescer do que em
evangelizar, esquecendo-se que não há crescimento numérico saudável sem uma
evangelização consistente. Para muitos não há diferença se as pessoas estão aderindo a uma igreja ou se convertendo verdadeiramente a Jesus
Cristo. Talvez isso ajude a explicar a secularização de muitas igrejas e a necessidade
de mecanismos para converter os crentes,
quer dizer, pessoas que já são membros de igrejas há muitos anos, mas que não
possuem convicções de fé substanciais. Infelizmente, o foco de muitos líderes
está nos números e não na autenticidade ou qualidade do fruto produzido.
Acredita-se
que isso em parte seja conseqüência da antropocentrização religiosa, que reduz
boa parte do fenômeno religioso à experiência e ação humanas. Um exemplo é a
mudança de nomenclaturas ligadas à evangelização: se fala hoje muito mais em conquistar o mundo para Cristo, do que
em ganhar pessoas para Jesus, como
outrora diziam os missiólogos. Conquistar tem a ver com a ação humana, com relações
de poder, com ganhar espaços, e pode até ter a ver com destruir o outro. Ganhar
traduz mais a idéia de graça, de ser abençoado na semeadura, de que o
crescimento da igreja, embora requeira a ação humana, sempre será fruto da ação
e misericórdia de Deus!
Uma
das noções básicas de eclesiologia é a de que igreja é a comunidade dos salvos.
Não é meramente uma organização filantrópica qualquer (Clinebell, 1987), mas
uma comunidade viva, formada por filhos de Deus em processo de aperfeiçoamento.
Ela deve levar as boas-novas a todas as pessoas, usando os métodos disponíveis,
visando sempre à redenção dos pecadores. Deve orientar a evangelização para as
necessidades, os questionamentos e as dificuldades das pessoas, apontando
sempre para as respostas que o Evangelho traz, usando tal correlação, unida à construção
de relacionamentos saudáveis, como meio para alcançar os outros (Schwarz,
1996).
Dessa
forma, a igreja evangelizará, discipulará e batizará as pessoas e elas se
tornarão compromissadas com Deus e com a sua causa, conscientes de que devem
fidelidade incondicional a Deus e não a homens ou instituições.Cabe à igreja
ensinar que Jesus sempre tem e sempre deverá ter o senhorio e a primazia na
vida cristã individual e na vida coletiva da igreja.
Na
igreja artesanal, ovelhas recém-nascidas devem ser levadas à maturidade para
gerar outras ovelhas, discípulos neófitos devem ser capacitados para se
tornarem mestres e discipuladores de outros mais novos, servos de Deus devem
ser conscientizados que foram redimidos para servir, a Deus em primeiro lugar,
mas também ao próximo.
Essas ações da igreja não podem ser cumpridas somente dentro de quatro paredes. É preciso sair, “ir para fora”, ir além. Evangelizar, discipular e servir implicam em reconhecer que a igreja não vive para si, para programas internos, para seus próprios projetos, para a comunidade intra-eclesiástica, para a recreação ou sociabilidade, somente. A igreja existe para a glória de Deus e para o serviço ao próximo, devendo ser agente de transformação do homem, da sociedade e da história (Cavalcanti, 1987), sempre debaixo da Graça de Deus.
9. O Culto inspirador, sem panacéias
e sem teatralidade
Nos
últimos 30 anos observa-se, especialmente entre os jovens, o estabelecimento de
uma cultura pop que vem marcando suas
vidas, músicas, expressões, programações, etc. A mesma se alastrou por todo o Ocidente
através da Globalização, estando presente nos diversos eventos freqüentados por
esta faixa etária, inclusive nas igrejas. Não obstante às igrejas não serem
formadas somente por jovens, muitas aderiram plenamente à cultura pop, desenvolvendo liturgias mais movimentadas, com
auditórios com luzes apagadas e púlpitos (palcos?) iluminados, música mais
alta, mais instrumentos musicais, uso de palmas, de coreografias, mais
teatralidade, mais mensagens visuais, etc. Às vezes, o som é tão alto e a
movimentação é tão intensa que parece ser necessário muito barulho e bastante
movimento para calar a voz que vem do coração. Entretanto, tudo isso feito à
revelia do desconforto de muitos outros jovens e adultos que não se comprazem
deste padrão, e, especialmente, dos idosos, que são os que mais sentem as
mudanças, principalmente, o som alto, a movimentação excessiva e a iluminação
inadequada.
Embora
não seja interesse entrar na discussão específica da estética do culto, a
igreja artesanal tem como proposta um culto mais simples, mais enxuto, e,
especialmente, mais inspirador. Não se fala aqui, entretanto, de acabar com a
alegria e vivacidade de um culto. Schwarz, pesquisador do tema crescimento de igrejas, afirma que
segundo suas pesquisas o elemento mais importante para a vida dos participantes
de um culto na atualidade é se ele é inspirador. Se for inspirador, o culto
promoverá edificação, bem-estar, integração e adoração. E mais, o adorador
voltará para adorar em outras ocasiões (Schwarz, 1996).
Dessa
forma, o culto deve ser um conjunto de ações voltadas para a adoração a Deus, ligadas
a um tema geral e a objetivos específicos. Devem fazer parte dele: oração,
leitura das escrituras, louvor, mensagem bíblica e dedicação. Podem fazer parte
das liturgias: hinos, cânticos, mensagens musicais, mensagens teatrais,
projeções, contrição, consagração, apelo, bênçãos, comunhão, etc. Tudo com
sobriedade e sem exageros.
Uma
das propostas desse artigo, entretanto, é de que haja nos cultos coletivos menos
show e mais adoração, menos movimento
e mais reflexão, menos barulho e mais atenção, menos retórica e mais
edificação, menos auto-ajuda e mais Bíblia, menos performance e mais consagração, menos panacéias e mais
objetividade, menos teatralidade e mais verdade, menos festa e mais culto,
menos complexidade e mais simplicidade.
Simplicidade,
aliás, que é um ponto fundamental para a igreja artesanal. O teólogo Chuck
Smith afirma que um dos elementos mais importantes para a espiritualidade
evangélica e para construção da fé cristã pós-moderna é a simplicidade (Smith apud Fillebrown, 2011). Aliás, C. S.
Lewis falou sobre a importância da pureza e simplicidade do Evangelho muito
antes das discussões sobre a Pós-Modernidade (Lewis, 2009).
10. Os Relacionamentos sadios, profundos
e íntegros
Há um interesse especial pelo tema das
relações humanas na atualidade. Isso porque as relações no mundo hipermoderno
se diluíram, se fragmentaram e se superficializaram. Fala-se muito de relações utilitárias, onde um dos sujeitos
é reificado e transformado em coisa, em objeto (Buber, 1979), de relações/conexões, ou seja, frágeis e
superficiais, incapazes de suportar as pressões da realidade atual (Bauman, 2004),
do hiperindividualismo, isto é, a
dificuldade que o sujeito contemporâneo possui de fazer parte efetiva de grupos (Lipovetsky & Serroy, 2011) e da privatização, que traz a idéia de que há
áreas na vida pessoal que não dizem respeito às outras pessoas, afetando a
noção de comunidade (Amorese, 1998).
Diante
desse quadro, a igreja artesanal precisa fazer uma opção pelo aprofundamento
relacional humano, enquanto desdobramento do relacionamento com Deus,
entendendo ser esse exatamente um dos maiores diferenciais da espiritualidade
cristã. Para que os relacionamentos sejam marcantemente cristãos, a Bíblia deve
nortear a formação de padrões relacionais do povo de Deus.
Apresentam-se
abaixo alguns princípios bíblicos capazes de melhorar as relações humanas, tornando-as
mais sadias, profundas e íntegras:
10.1.
Amar um ao outro.
O apóstolo Paulo afirma em Rm 12.10a: “Amai-vos
cordialmente uns aos outros, com amor fraternal”.
O amor é
o princípio cristão da excelência. Mas, infelizmente, muitos confundem amar com
usar e esse é um erro muito pernicioso para as relações (BUBER, 1979). Amar
implica em querer o bem do outro, em entregar-se ao outro e pelo outro. Foi
assim que Deus amou a humanidade e é dessa forma que Ele espera que cada um ame
o seu próximo. Schwarz afirma que “o amor de verdade dá à igreja um brilho
produzido por Deus” (Schwarz, 1996, p.36). Quando se ama efetivamente superam-se
as relações utilitárias, a superficialidade relacional e o hiperindividualismo.
As relações eclesiásticas se tornam melhores e mais profundas.
10.2. Aceitar um ao outro.
Está
escrito em Rm 15.7: “Portanto, recebei-vos uns aos outros, como também Cristo
nos recebeu para a glória de Deus.”
Muitas vezes convive-se com pessoas, mas não se aceita o seu jeito de ser, suas limitações e potencialidades. Isso dificulta o aprofundamento relacional. Na verdade ninguém é perfeito e todas as pessoas possuem limites. Por isso, deve-se incentivar as pessoas a exercitarem a tolerância e aceitarem o outros, apesar do que elas são, aceitá-las assim como Cristo as aceitou. A Bíblia diz em Ef 2.14: “Pois ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um e destruiu a barreira, o muro de inimizade”. Jesus já derrubou as paredes que separavam as pessoas e destruiu toda inimizade que havia. Em Cristo a comunhão se tornou possível, e isso perpassa pela questão da aceitação mútua.
10.3. Saudar um ao outro.
Existe em Rm 16.16 a afirmação: “Saudai-vos uns aos
outros com ósculo santo.”
Essa era
a prática na igreja primitiva: os irmãos se saudarem com um beijo. O importante
não é destacar a forma da saudação, mas a saudação em si. Saudar o outro, além
de ser educado, tem um grande poder psicológico e terapêutico, pois implica em se
reconhece a existência do outro. Dessa forma, o outro se sente percebido,
recebido e valorizado. É muito difícil viver num mundo onde as pessoas são
reduzidas a números, a coisas, sendo marcadas pela insignificância. Não deve
ser assim na vida eclesiástica.
10.4. Ter cuidado um pelo outro.
Paulo atesta
em 1 Co 12.25: “Para que não haja divisão no corpo, mas antes tenham os membros
igual cuidado uns pelos outros.”
Vive-se numa
sociedade extremamente individualista e competitiva. Às vezes permite-se que
esse estilo de vida penetre nas casas e nas igrejas e o resultado disso é o descompromisso
com o bem do outro. É preciso resgatar os sensos de pertencimento e de coletividade.
Só assim alguém conseguirá cuidar do outros, demonstrar mais interesse e
compartilhar, de tal maneira que o espírito cooperativo seja desenvolvido,
contribuindo para a edificação das pessoas e do corpo de Cristo.
10.5. Não consumir (destruir) um ao outro.
O apóstolo
Paulo afirma em Gl 5.15: “Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros,
vede não vos consumais uns aos outros.”
As
relações cristãs precisam ser boas, saudáveis e harmoniosas, se o desejo é o
crescimento pessoal e da comunidade eclesiástica. Assim, é preciso crescer
juntos, o que requer o aprofundamento da arte da convivência e do desejo de lutar
uns pelo crescimento dos outros. Na abordagem paulina há evidências de sérios
problemas relacionais na igreja da Galácia, assim como na igreja em Corinto.
Por isso incentiva os irmãos em Cristo a se entenderem e a superarem as desavenças.
Intrigas e dissensões precisam ser vencidas com diálogo e tolerância para com
as diferenças. A harmonia e a paz são sempre alvos na igreja.
10.6. Levar as cargas uns dos outros.
Em Gl 6.2
se lê: “Levai as cargas uns dos outros, e assim estareis cumprindo a Lei de
Cristo.”
Há
momentos na vida nos quais é preciso desenvolver relações de ajuda. Esse é um tema muito abordado na psicologia
atual, embora a Bíblia já o apresente há dois mil anos. Podem-se tornar os
sofrimentos dos outros menores quando se ajuda o próximo a carregar as suas
cargas. Os sofrimentos das pessoas podem ser amenizados, se outros estiverem presentes
nas lutas e na dor, compartilhando as cargas alheias.
É o mesmo Paulo que afirma:
Bendito
seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o
Deus de toda consolação, que nos consola em toda a nossa tribulação, para que
também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a
consolação com que nós mesmos somos consolados de Deus (2 Co 1:3,4).
Quem já
sofreu e superou suas lutas está habilitado a socorrer quem sente a mesma dor
no presente. A presença de alguém confiável nas tribulações pode ajudar muito, aliviando
as cargas, promovendo esperança e renovando as forças.
10.7. Perdoar um ao outro.
A Bíblia diz
em Ef 4.32: “Antes sede uns para com os outros benignos, misericordiosos,
perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo.”
O perdão é
uma ação de grande relevância espiritual, sendo fruto da ação de Deus sobre a vida
das pessoas. Para que aconteça é necessário deixar Deus agir na vida,
conscientizando-se que todos são pecadores que precisam de perdão, inclusive o
próprio perdoador. É importante entender que o perdão é um mandamento
dado por Deus a todos os seus servos (Mt 6.12-15). Não é uma mera escolha.
Não é uma simples possibilidade. Quem não perdoa está pecando, o que
compromete a comunhão com Deus.
10.8. Não mentir um ao outro.
O Novo
Testamento afirma: “Pelo que deixai a mentira e falai a verdade cada um com o seu
próximo.” (Ef 4.25).
A mentira
sempre existiu, mas infelizmente, vem se tornando culturalmente aceita,
tolerada e incentivada. Vivem-se tempos onde a mitomania, a mania de mentir, se alastrou pelas cidades, países e
atingiu o mundo todo. Atingiu todas as esferas: dos mais altos escalões
governamentais e corporativos, às pessoas mais simples. Por isso, a mentira deve
ser evitada na vida comunitária cristã e a verdade precisa ser dita sempre,
mesmo que muitas vezes com bastante cuidado para não machucar as pessoas mais
frágeis. Ninguém deve usar a verdade para agredir o outro, mas sempre para
ajudá-lo. Por isso, a verdade deve ser dita em amor.
10.9. Encorajar um ao outro.
Em 1 Ts
5.11 se lê: “Pelo que exortai-vos uns aos outros...”.
Dizem que
uma das características dos homens e mulheres contemporâneos é a ausência de
coragem. Por isso, ela se torna uma virtude muito importante para o mundo hodierno
(Tillich, 1976). Neste sentido, homens e mulheres cristãos precisam ser
encorajados constantemente à prática do bem, da justiça, da verdade, do amor, etc.
Encorajados através de palavras e do exemplo. Se assim acontecer, muitos serão
impulsionados a deixar a vivência medíocre em busca da excelência cristã.
10.10. Orar um pelo outro.
Em Tg
5.16 está escrito: “... Orai uns pelos outros...”.
A oração
é um poderoso instrumento concedido por Deus aos seus servos. Ao orar, deve-se
fazê-lo pelos queridos, pelos amigos, pelos familiares, mas até mesmo pelos perseguidores
(Mt 5.44). Primeiro, orando com gratidão, o que revela um espírito humilde
e quebrantado. É importante agradecer por tudo: por pessoas, situações,
vitórias e também pelas dificuldades, pois através delas é possível ter o
caráter moldado e o temperamento aperfeiçoado. É preciso, também,
valorizar a intercessão durante a oração. Interceder pelas pessoas que passam
pelo caminho trilhado, pelas circunstâncias da vida, pelas adversidades. Não
existe acaso. Ore, apresentando vidas, problemas, dificuldades, planos e
projetos. Tudo deve ser apresentado diante de Deus. Ele tem todo o poder, por
isso Paulo incentivou os cristãos a orarem sempre (1 Ts 5.17).
Estes são alguns exemplos de princípios bíblicos que ajudam a fortalecer os relacionamentos cristãos. Dezenas de outros existem, devem ser conhecidos e colocados em prática, o que melhorará exponenciamente as difíceis relações humanas.
Conclusão
A industrialização moderna promoveu o
surgimento das metrópoles e muitas pessoas, em busca de uma vida melhor, se
mudaram para os grandes centros urbanos. Infelizmente, com o passar dos anos os
grandes centros apresentaram, além de uma vida melhor em determinados aspectos,
inúmeros problemas ligados à grande concentração populacional e ao estilo de
vida contemporâneo, caracterizado pelo ativismo, violência, grandes distâncias,
perda de tempo com o transporte, superficialidade relacional e foco na
materialidade da vida. Hoje, em pleno mundo globalizado, muitos fazem o
movimento contrário, deixando os grandes centros e voltando para cidades
menores, ou mesmo lugarejos, em busca de uma existência com mais qualidade:
vida mais tranqüila, estável, segura, simples, focada no que realmente importa,
valorizando a família, os amigos e a espiritualidade. Neste retorno redescobriram
axiomas outrora perdidos com a modernização.
É nessa cultura industrial, ou
pós-industrial (Kumar, 1997), cansada da produção
em série que muitos buscam uma produção
artesanal, manufaturada, simples,
criativa, singular, natural, de qualidade e focada no essencial. Muitos
acreditam que essa tendência deva atingir, inclusive, a religião, a igreja e a espiritualidade.
Cansados da mesmice estrutural e da parafernalha
tecnológica, complexa, massificada e pop que
envolvem a vida de muitas igrejas no mundo hipermoderno, muitos estão optando
por um retorno à simplicidade. Querem uma espiritualidade mais pessoal, uma
comunidade de fé diferenciada, e, ao mesmo tempo, uma experiência religiosa
mais profunda e substancial, que atinja todas as esferas da vida humana,
interiores e exteriores. Essa é a idéia por trás da Igreja Artesanal: a busca
por um Evangelho mais puro e mais simples, focado no que realmente importa e experimentado
numa comunidade de fé menos industrializada
e mercantilizada. É disso que este artigo fala! Talvez seja isso que você
também esteja procurando!
Referências
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[1]
Membro
da Fraternidad Teologica Latinoamericana
(FTL-B). Graduado em Teologia (STBNB e FTSA), Pós-Graduado em Docência
do Ensino Superior (ITOP) e Pós-Graduando em Telemática (IFTO). Professor de
Teologia no STBT, SETA e STBG. Pastor da Igreja Batista Metropolitana em Palmas
– TO.
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