terça-feira, 19 de julho de 2022

 


Diálogos com Paul Tillich e Simone Weil: uma crítica filosófica cristã ao Marxismo 

Diogo Souza Magalhães[1]

  

RESUMO: Este artigo apresenta as visões de dois filósofos cristãos sobre o Marxismo: Paul Tillich e Simone Weil. Após introduzir a crítica feita pelo filósofo socialista Walter Benjamim ao Capitalismo, enquanto uma espécie de religiosidade secular, aponta que o Marxismo também pode receber críticas semelhantes. Tal parecer é realizado a partir da perspectiva tillichiana, que se refere ao Marxismo como uma religião demônica, bem como considerando o pensamento de Weil, que compreende o Marxismo como uma falsa ciência, baseada num sistema dogmático de pensamento. Conclui, apontando o caráter religioso, necrófilo, opiáceo e dogmático do Marxismo.

 

PALAVRAS-CHAVE: Cristianismo. Filosofia da religião cristã. Marxismo. Paul Tillich. Simone Weil.

 

ABSTRACT: This article presents the views of two Christian philosophers on Marxism: Paul Tillich and Simone Weil. After introducing the criticism made by socialist philosopher Walter Benjamin to Capitalism, as a kind of secular religiosity, he points out that Marxism can also receive similar criticisms. Such an opinion is carried out from the Tillichian perspective, which refers to Marxism as a demonic religion, as well as considering Weil's thought, which understands Marxism as a false science, based on a dogmatic system of thought. It concludes by pointing out the religious, necrophilic, opiate and dogmatic character of Marxism.

 

KEYWORDS: Cristianism. Marxism. Paul Tillich. Philosophy of christian religion. Simone Weil.

1 Introdução

Neste início de século muitas discussões existem entre os ideólogos acerca das filosofias políticas e econômicas. As mais debatidas na atualidade continuam sendo o Capitalismo e o Socialismo. Devido à forte ênfase hegemônica relativa ao pensamento de Esquerda na Academia nos últimos 50 anos no Brasil, muitos desconhecem as críticas feitas ao pensamento e à prática socialistas, especialmente marxistas.

Desde a primeira metade do Século XX o Socialismo recebeu fortes críticas. Ludwig Von Mises (2012), Milton Friedmann (2014) e Friedrich Von Hayek (2017), por exemplo, o criticaram em termos políticos e econômicos. George Orwell (2009) e Herman Dooyeweerd (2014), por outro lado, formularam críticas políticas e mais filosoficamente embasadas, sendo igualmente contundentes. Infelizmente a Academia brasileira praticamente desconhece as críticas feitas ao Marxismo pelo filósofo alemão Paul Tillich (2010), em termos filosófico-religiosos, e pela filósofa francesa Simone Weil (2001), com ênfase filosófica e epistemológica.

Walter Benjamin, um dos grandes protagonistas da Escola de Frankfurt na Alemanha nas primeiras décadas do Século XX, formulou uma crítica ao Capitalismo, afirmando-o como uma religião (BENJAMIN, 2013). Isso aconteceu através de um de seus textos menos conhecidos no Brasil, intitulado Gesammelte Schriften VI (Escritos Recolhidos VI), escrito em duas laudas, em 1921, e traduzido para o português por Nélio Schneider e Renato Pompeu, que deram ao mesmo o título de O Capitalismo Como Religião (BENJAMIN, 2013).

Assim como Benjamin fez sua crítica ao Capitalismo, é possível a partir de premissas semelhantes formular críticas ao Socialismo. O objetivo desse artigo, então, é apresentar as principais idéias de Tillich e Weil sobre o Marxismo, e através delas, expor críticas e sugestões antitéticas ao Marxismo.

2 Procedimentos metodológicos

A pesquisa realizada é qualitativa. O método utilizado para coleta de dados foi a Revisão Bibliográfica, desenvolvida através da noção de corpus teórico, referindo-se não uma coleção completa de literatura, ou uma bibliografia inteira de determinado autor, mas a uma coleção finita de materiais (BAUER; AARTS, 2015). Embora os significados mais antigos de corpo de um texto impliquem a coleção completa de textos, de acordo com algum tema comum, “mais recentemente o sentido acentua a natureza proposital da seleção...” (BAUER; AARTS, 2015, p.45). A noção de Corpus teórico pode ser usada tanto em pesquisas lingüísticas, sociais e nas humanidades em geral, como é caso deste artigo (BAUER; AARTS, 2015). Aqui o método foi desenvolvido fazendo a escolha de determinadas obras de Tillich, Weil e alguns outros autores, relativas ao tema abordado, assistematicamente.

A análise dos dados coletados foi realizada tendo como base a Metalogia, ou “Análise Metalógica” (TILLICH, 2009; HIGUET, 2011), que é método crítico-intuitivo desenvolvido por Tillich para discutir temas pertinentes à Filosofia da Religião. Tal método sofre influências da Teoria Crítica, com ênfase na história, na política e no juízo quanto à realidade, mas também do modelo intuitivo de análise fenomenológica, transcendendo-os e dirigindo-se à superação de reflexões meramente formais, propondo uma compreensão substancial das questões.

Para o filósofo alemão, “a religião é a orientação para o incondicional e a cultura é a orientação para as formas condicionais e sua unidade” (TILLICH, 1973, p.320). Dessa forma, enquanto a religião lida com o Sagrado e a Realidade Última, a cultura lida somente com elementos simbólicos, não podendo apresentar a função religiosa na sua pureza (HIGUET, 2011). Por isso, o autor optou por um método que incorporasse a metafísica, a intuição, e o sentimento religioso em suas possibilidades analíticas e argumentativas, abandonando a Teoria Crítica e suas limitações metodológicas.

                                                      

3 Análise e discussão

Considerou-se primeiramente o pensamento de Paul Tillich sobre o Marxismo, apresentando suas discussões e conclusões, e, posteriormente, a análise, discussão e conclusões de Simone Weil sobre o pensamento de Karl Marx a respeito das questões sociais.

 

3.1 A Crítica de Paul Tillich ao Marxismo: uma religião demônica

Paul Tillich foi um importante teólogo e filósofo protestante alemão do Século XX. Assim como Benjamin, foi membro da Escola de Frankfurt, sendo um dos principais protagonistas da Teologia Existencial, o criador do Método Teológico da Correlação (GIBELINI, 2007) e da Análise Metalógica em Filosofia da Religião (HIGUET, 2011). De tendência liberal, foi considerando integrante do movimento Neo-Ortodoxo, comum na primeira metade do século passado, juntamente com Karl Barth, Rudolf Bultmann e Dietrich Bonhoeffer, entre outros (GIBELINI, 2007). Ele foi profundamente influenciado pelo teólogo alemão Friedrich Schleiermacher, pelo filósofo alemão Frederich Schelling, bem como pelo filósofo/teólogo dinamarquês Soren Kierkegaard, cujas idéias permeiam suas obras (TILLICH, 2005).

Analisando o Marxismo, Tillich afirma que: 

Certamente, o movimento marxista é quase religioso. Eu não diria pseudo-religioso, pois pseudo significa enganoso ou mentiroso. Mas é quase-religioso porque conserva em seu interior a estrutura do profetismo, embora com a perda da linha vertical e transcendente. (TILLICH, 2010, p.181)

 

O teólogo alemão percebeu facilmente que o aspecto “profético” presente no Marxismo é algo comum ao fenômeno religioso, especialmente judaico-cristão, capaz de denunciar a realidade vigente e anunciar um novo mundo (TILLICH, 2010). Por este motivo, Tillich se mostrou inúmeras vezes um apreciador das idéias revolucionárias marxistas, sendo capaz de afirmar em determinado momento de sua vida acadêmica que Marx foi o grande teólogo da modernidade (TILLICH, 2010). Na visão tillichiana, o Marxismo é dotado dessa mensagem “profética” marcada por certo criticismo para com a realidade, embora como ele mesmo afirmou, destituída de transcendência, de uma esperança escatológica. Ou seja, a ideologia criada por Marx é um “profetismo” que anuncia uma esperança temporal, prisioneira deste mundo, limitada pelo tempo, pelo espaço e pela condição humana (TILLICH, 2010).

Isso se dá, segundo Higuet, porque...

o método crítico alcança apenas um elemento da consciência do sentido, a forma do sentido e deixa de lado o outro elemento, o conteúdo substancial do sentido, desprezando assim o fundamento real pressuposto em todas as formas e sentidos. Ora, a unidade das formas e de toda forma particular, sem a relação ao conteúdo substancial, é completamente vazia (HIGUET, 2011, p.32).

 

Entretanto, Tillich apresenta outros elementos religiosos comuns ao Marxismo, além do “profetismo”. Segundo ele, no pensamento de Marx o Estado é percebido como uma espécie de incondicional (Sagrado), que faz parte da sua prática marxista os cultos às personalidades (idolatria) e que há em sua teoria certo aspecto messiânico (soteriológico), onde o proletariado assume o lugar do Messias judaico-cristão. Aliás, isto é asseverado claramente, quando Tillich propõe que no pensamento marxiano “o proletariado tem poder salvador por causa desse papel revolucionário” (TILLICH, 2010. p.180). O estranho para aquele que faz uma análise filosófico-religiosa do Marxismo é estas idéias religiosas estarem presentes no pensamento de um ateu que constrói seu método a partir do historicismo crítico, para o qual não há uma realidade acima de todas as realidades (TILLICH, 2010). O Marxismo se “mostra (...) incapaz de apreender conceitos que irrompem através de todas as formas, como graça, revelação e demonia. Sozinho ele é inadequado para tratar de religião” (TILLICH, 1973, p.306). Na verdade, Marx usou idéias religiosas com finalidade política, mas para isso teve que despi-las de sua transcendência, atemporalidade e trans-historicidade.

Tillich sabia muito bem que Marx defendia o caráter utópico no Socialismo, marcado pela presença da idéia poderosa da esperança, algo tão comum à religiosidade em geral, mas que para o pai do socialismo - dito científico - assume uma perspectiva de plenitude social imanente, mundana, através do Comunismo. O filósofo de Halle também comentou sobre a ética socialista, que à principio se mostrou muito semelhante à ética religiosa cristã, tomando com o passar do tempo um direcionamento bastante pragmático e teleológico, portanto, desassemelhando-se posteriormente dos axiomas cristão  (TILLICH, 2010). Esse é outro elemento estranho ao pensamento crítico, pois não é próprio para discussões de questões ligadas ao etos, aos valores, estando muito mais próxima das Ciências do Espírito (HIGUET, 2011).

Por tais motivos, o Marxismo seria tillichianamente uma espécie de religião demônica, pois se dedicaria a um objeto inferior àquilo que é verdadeiramente incondicional[2], mirando no que é finito, criado e profano (TILLICH, 2010). Além disso, desenvolveria uma prática que, embora aparentemente humanizadora, libertadora e igualitária, fomentaria ações opressoras, destrutivas e aniquiladoras, já que para o Marxismo os fins justificam os meios (WEIL, 2001). Tillich percebe esse elemento paradoxal e ambíguo no Marxismo e o aponta como negativo e passível de crítica (TILLICH, 2010) a partir da Filosofia da Religião, especialmente da análise metalógica.

Martins (2004) apresenta de forma muita clara o que é demônico para Tillich, ajudando bastante sua compreensão:

Tillich procura distinguir entre a relação do demônico e do profano com o divino. O demônico não resiste à auto-transcendência como o profano, mas distorce a auto-transcendência identificando um portador particular de santidade com o próprio sagrado. Nesse sentido, todos os deuses politeístas seriam demoníacos, porque a base de ser e sentido sobre o qual eles se apóiam é finita, não importando quão sublime, ampla ou dignificada ela possa ser. E a reivindicação de algo finito querer ser infinito ou de aspirar à grandeza divina é a característica do demoníaco. Demonização do sagrado ocorre em todas as religiões, dia após dia, mesmo naquela religião que se baseia na auto-negação do finito na cruz do Cristo. A procura da vida sem-ambigüidade (Sic) é, conseqüentemente, apontada mais radicalmente contra a ambigüidade do sagrado e demoníaco no reino religioso (MARTINS, 2004, p.174).

 

A perspectiva tillichiana de Deus o apresenta como o Divino, o Sagrado, o Ser-em-Si, ligado à idéia da Realidade Última e Incondicional (TILLICH, 2005). Sendo assim, tudo a que é dado valor incondicional e não é efetivamente o incondicional ocupa o lugar de Deus e se torna, por isso, demônico (TILLICH, 2002). Desta forma, o Ultimate Concern[3] é aquele que transcende a condição humana, indo em direção à Preocupação Última, trazendo significação e sentido, sendo relativo à esfera religiosa, acessível somente através da fé, ou seja, do ato de ser possuído pelo Incondicional (TILLICH, 2002). Dessa forma, pode-se afirmar que o Marxismo é um sistema vazio e sem significação última, sendo, portanto, meio e não fim!

Na visão do teólogo de Halle todos os homens vivem em busca de uma Realidade Última e Incondicional, mesmo que inconscientemente (HIGUET, 2011). Para uns, tal realidade poderia ser, equivocadamente, um deus, para outros, seriam, imprecisamente, os deuses, o estado, o capital, etc.. Com essa compreensão Tillich relativiza a noção comum do Ateísmo – apresentando-o através de religiões seculares ateístas - e possibilita que, tanto o Capitalismo, cujo incondicional é o Capital, quanto o Socialismo, cujo incondicional é o Estado, sejam percebidos como ideologias idólatras ou demônicas. Em sua visão, todo culto prestado a algo criado, que não seja auto-existente, e que seja menor do que Deus é idolatria, isto é, culto dedicado ao eidolon ou ao daimonia (TILLICH, 2002).

O próprio Benjamin percebeu esse elemento demônico no Marxismo, ao dizer que, também para Marx, “o Capitalismo impenitente se converte em Socialismo com juros e juros sobre juros, que, como tais, são função da culpa (ver ambiguidade demoníaca[4] desse conceito)” (BENJAMIN, 2013, p.23). Ou seja, o Marxismo, na ótica benjaminiana, seria a forma da sociedade expurgar ou pagar pelos pecados praticados por causa da usura capitalista, o que denota uma expressão religiosa punitiva, vingativa, coercitiva e opressora, ao invés de libertadora, emancipadora e repleta de graça, como anuncia o Evangelho de Jesus Cristo (BIBLIA SAGRADA ALMEIDA SÉCULO 21, 2013), ao assegurar: “sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus” (Rm 3:24) e “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isso não vem de vós; é dom de Deus” (Ef 2:8). Não... na verdade, a religião marxista anuncia uma “salvação” advinda do sofrimento humano, do expurgo da culpa promovido pelo Socialismo.

Para Tillcih, entretanto, “O movimento marxista não foi capaz de fazer autocrítica por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos de Stalinismo” (TILLICH, 2010, p.182). Ele ainda diz que “faltou a Marx uma crítica vertical[5] contra si mesmo” (TILLICH, 2010, p.178).  Por isso, o “profetismo” secularizado apregoado por Karl Marx se diferencia essencialmente do profetismo bíblico e teísta tão propagado no Antigo Testamento e consumado no Novo Testamento (TILLICH, 2010; HIGUET, 2011).

Certamente, as maiores críticas que se pode fazer hodiernamente ao Marxismo são: a falta de concretude histórica da realização de seu projeto (crítica histórica), a incapacidade de autocrítica, devido ao seu aspecto radical, totalitário e dogmático (crítica filosófica), sua perspectiva pseudocientífica e dogmática (crítica epistemológica), bem como sua manifestação religiosa, ou para-religiosa secularizada, negativa e desgraçada (crítica da Filosofia da Religião e da Teologia), isto é, sem a manifestação da Graça de Deus, que concede a salvação através de Cristo, como uma dádiva imerecida[6] (VERBRUGGE, 2018).

 

3.2 A Crítica de Simone Weil ao Marxismo: uma pseudociência dogmática

Simone Weil foi uma filósofa francesa de origem judaica que desenvolveu uma profícua carreira como escritora. Foi discípula do filósofo francês conhecido como Alain, pseudônimo de Émile-Auguste Chartier (1868-1951), professor de filosofia que marcou indelevelmente diversos intelectuais franceses que foram seus alunos antes de ingressarem nas grandes Escolas ou na Sorbonne (PUENTE, 2020)Se interessou em pesquisar e discutir a realidade do trabalhador no sistema Capitalista, marcadamente das trabalhadoras francesas, demonstrando certa apreciação à princípio pelas idéias socialistas, especialmente marxistas. Diante das contradições de seu contexto e de diversas crises pessoais, entretanto, experimentando profundo sofrimento existencial no contexto da Segunda Grande Guerra, exilou-se na Inglaterra por causa dos totalitarismos continentais europeus e aproximou-se de Cristo, do Cristianismo e da Igreja Católica Romana (CARVALHO; FACHIN, 2009.). Tal experiência a levou a reconsiderar sua postura ideológica e, a partir de então, passou a formular críticas contundentes a Karl Marx e ao Marxismo, apresentando o último como dúbio e falseável (SUÁREZ, 2013; POPPER, 2006).

É inegável que o Marxismo possui uma teoria com aspectos chamativos, assumindo muitas vezes uma aparência científica - embora não o sendo, como afirma Weil (1955). É perceptível que o sistema de pensamento marxista converteu-se em verdade absoluta, mesmo sem comprovação factual e experimental. Vários dos enunciados marxianos são apriorísticos, não provados por aquilo que se considera efetivamente ciência, tornando-o uma pseudociência e aproximando-o do elemento religioso (WEIL, 1955). Weil afirmou certa vez: “há contradição, contradição gritante, entre o método de análise de Marx e suas conclusões. Não é de se estranhar: ele elaborou as conclusões antes que o método” (WEIL, 1955. p.195). Sobre esta questão, a própria Weil cogitou que...

O socialismo dito científico criado por Marx passou à condição de dogma, como, aliás, todos os resultados estabelecidos pela ciência moderna, e se aceitam de uma vez por todas as conclusões sem jamais se perguntar sobre os métodos e as demonstrações. Preferimos acreditar que Marx demonstrou a constituição futura e próxima de uma sociedade socialista, antes de procurar em suas obras se podemos encontrar mesmo a menor tentativa de demonstração (WEIL, 1955, p.185).

 

É verdade: as idéias marxistas nem sempre demonstram realidades, mas ordinariamente tentam construí-las, devido à sua ênfase praxística, projetando-as e efetivizando-as geralmente de forma bastante radical e violenta.  Por se tornar sinônimo de mudança, de alteração da ordem e de “aperfeiçoamento”, com o tempo, o Marxismo resultou na ideologia predileta de uma casta de revolucionários e intelectuais inconformados. Como bem afirmou Edmund Wilson: “o Marxismo é o ópio dos intelectuais” (WILSON, 2004, p.340), tese com a qual o filósofo Raymond Aron concordou interiamente (ARON, 2016), fazendo um trocadilho com a famosa crítica de Marx: “a religião é o ópio do povo” (MARX, 2007, p.146).

Onde a ideologia marxista foi implantada e onde o seu projeto se tornou prático houve a perda da dita beleza teórica das idéias e o afastamento do caráter “científico” e utópico do movimento, tornando o projeto marxista uma realidade distópica[7] e caótica. Genocídios e etnocídios foram cometidos em seu nome, fazendo-a assumir “formas condicionadas” (HIGUET, 2011, p.35). Fala-se de mais de 100 milhões de pessoas mortas nas revoluções socialistas pelo mundo no Século XX (COURTOIS et al., 2019).

Foi a contemporânea de Simone Weil, a alemã Hannah Arendt (2006), um dos que denunciaram esse tipo de totalitarismo distópico na primeira metade do Século XX. Ao abordar o tema da violência comum em tais movimentos, afirmou:

A violência é, por natureza, instrumental; como todos os meios sempre precisam de um guia e uma justificação até lograr o fim que persegue. E o que precisa de justificação por algo, não pode ser a essência de nada (ARENDT, 2006, p.70).

 

Sociedades inteiras foram trucidadas em revoluções que aconteceram em nome de uma pseudo-utopia irrealizável intramundanamente. Por onde este rolo-compressor - o Marxismo - passou não foi permitida a existência de nada que lhe opusesse. A destruição, a vergonha, a opressão e a morte (aos milhões) foram justificadas por um projeto desumano, necrófilo[8] (FROMM, 1992), e por que não dizer efetivamente demônico. Nesse sentido, o Marxismo implantado em vários países, negou contraditoriamente a dialética, que é seu fundamento filosófico, ao promover a supressão da tensão interna inerente a ela - a antítese, a crítica - sendo a censura e o ostracismo suas marcas registradas (TILLICH, 2010). Com isso, é inevitável a afirmação: o Marxismo abandonou a dinâmica, o movimento, e tornou estático, dogmatizando-se e afirmando-se como absoluto.

Além disso, o Marxismo é extremamente crítico com a estrutura social e com os sistemas de pensamento contrários, por ser baseado em uma filosofia crítica. Considera burguês, alienado, reacionário e economicamente opressor o Capitalismo/Liberalismo, por manter intocada certa estrutura social (burgueses e proletários). Apesar de tão crítico, devido à sua estrutura rígida e dogmática, e à doutrinação metanarrativa que se tornou comum em sua prática, o Marxismo não conseguiu formular uma crítica relevante de si mesmo desde que foi criado. Todos os grandes teóricos[9] que desenvolveram a doutrina marxista com Karl Marx, e depois dele, foram tão dogmáticos, imperativos, prepotentes e jactanciosos quanto ele, reforçando o caráter religioso negativo do movimento e pseudocientífico, por ser profundamente categórico e absoluto. Tal constatação suscita hoje descrença e desconfiança em relação à sua teoria, principalmente quando se leva em consideração uma reflexão mais filosófica, do que propriamente sociológica ou econômica.

Apesar disso, o pensamento marxista continua sendo percebido pelos membros da Esquerda através dos anos como absoluto e inquestionável, e talvez seja essa hybris[10] a sua maior fraqueza, como diria Tillich, ao comentar e criticar o pensamento hegeliano (TILLICH, 2010), que é a base filosófica sobre a qual se constrói a teoria marxista. Assim, como para Hegel “essa hybris ocasionou a tragédia para o seu sistema” (TILLICH, 2010, p.123), o mesmo se pode dizer de Marx, ao tentar fazer de seu pensamento um sistema capaz de compreender e mudar o mundo (MARX, 2007), através de uma razão crítico-revolucionária (TILLICH, 2010). O que as idéias de Marx efetivamente conseguiram, entretanto, foi um reducionismo político e limitante da realidade, a divisão radical dos grupos sociais, fortalecendo os antagonismos, e a destruição dos opositores às suas idéias e projeto revolucionário.

O Marxismo tentou ser um sistema de pensamento tão poderoso e grandioso, que evidenciou aí a sua grande debilidade: não permitiu o surgimento de antíteses, o vir-a-ser comum a um sistema de pensamento baseado no movimento, como o é a Dialética. Sobre isso, Orwell afirmou:

A ditadura do proletariado só poderia ser uma ditadura de um punhado de intelectuais, reinando por meio do terrorismo [...] Naquela posição, os comunistas russos transformaram-se necessariamente numa casta governante permanente ou numa oligarquia, recrutada não pelo nascimento, mas por adoção. Uma vez que não podiam arriscar o crescimento da oposição, não podiam permitir a crítica genuína e, uma vez que a silenciavam, frequentemente cometiam erros evitáveis; então, por não poderem admitir que aqueles erros eram seus, tinham que arranjar bodes expiatórios, às vezes em enorme escala”. (ORWELL, 2006, p.100).

 

Esta é a filosofia política seguida por milhões, talvez bilhões de pessoas em todo o mundo em pleno Século XXI. Um sistema capaz de tudo para conseguir o poder e se manter no controle dele, como muitos revolucionários socialistas afirmaram e fizeram história afora. Um sistema que acredita que a destruição, a morte e o não-ser fazem parte do processo de construção de uma utopia, na transformação da realidade no melhor dos mundos possível (LEIBINIZ, 1991), e até na edificação de uma Nova Babel (IL PEDANTE, 2021). Mas, amar o poder pode ser um grande problema por produzir a desumanização da sociedade, o caos e as distopias. Por isso, Tillich afirma que ao invés de amar o poder é preciso ter o poder de amar (TILLICH, 2004), afinal o poder pelo poder corrompe irrestritamente.

Por tudo isso, como disse Weil, o Marxismo não passa de um dogma (WEIL, 1955), e como todo dogma, é inquestionável e radical. Ele é completamente uma religião (WEIL, 2001), embora uma manifestação religiosa secular e sem transcêndência. Uma religião intransigente, severa, autoritária, implacável e extremamente dogmática. Numa discussão de caráter epistemológico, Weil (1955) pondera que o Marxismo se tornou uma pseudociência, marcada por a prioris, dogmas e idéias inquestionáveis.

 

 

 

4 Considerações finais

Ao longo da história, o Marxismo se mostrou tão imperativo, presunçoso e fechado quanto qualquer pensamento religioso ultraconservador ou fundamentalista, recusando toda e qualquer possibilidade de diálogo, de crítica, e exigindo, em contrapartida dos seus adeptos o que os teólogos chamam de “fé”, ou seja, o ato de ser possuído pelo incondicional (TILLICH, 2002). Na verdade, o sistema marxista é pseudo-incondicional, pois manifesta somente a sombra do verdadeiro Incondicional, capaz de trazer significado e sentido último à existência humana. A crítica desse artigo ao Socialismo marxista, portanto, aponta para o fato dele ser uma expressão religiosa secular, demônica e de tendência bastante dogmática, radical e violenta, como disseram Weil (2001) e Tillich (2010).

Corroborando com o que foi apontado até aqui sobre o elemento religioso demônico e pseudo-religioso do Marxismo, apresenta-se aos leitores a famosa Oração do Delegado (uma prática essencialmente religiosa) rezada ao ditador socialista venezuelano falecido Hugo Chávez no Teatro Caracas em plena capital venezuelana, pelos membros do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), no dia 28 de agosto de 2014. A oração diz assim:

Chávez nuestro que estás en el cielo, en la tierra, en el mar y en nosotros, los y las delegadas. Santificado seja tu nombre. Venga a nosotros tu legado para llevarlo a los pueblos de aquí y de Allá.  Danos tu luz para que nos guíe cada dia. No nos dejes caer en la tentación del capitalismo. Mas líbranos de la maldad y de la oligarquía ("como del delito del contrabando").  Porque de nosotros y nosotras es la patria, la paz y la vida. ¡Por los siglos de los siglos, amén! ¡Viva Chávez! (ESTADO DE MINAS, 2014)

 

Finaliza-se este artigo com outra “oração”: que o Deus Todo-Poderoso, Pai do Senhor Jesus Cristo, Aquele que pertencente efetivamente a esfera do Incondicional, guarde a humanidade desta religião demônica, e livre os intelectuais (e também os meros mortais) dessa pseudociência dogmática, necrófila e opiácea. Amém!

 

5 Referências

 

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BÍBLIA SAGRADA ALMEIDA SÉCULO 21: antigo e novo testamento [Coord. Luiz Alberto Teixeira Sayão]. São Paulo: Vida Nova, 2013.

 

CARVALHO, Gilda; FACHIN, Patrícia. Simone Weil: a vida em busca da verdade. (Entrevista de Maria Clara Bingemer). In: Filosofia, mística e espiritualidade: Simone Weil, cem anos. GABELLIERI, Emmanuel et al. IHU On Line – Revista do Instituto Humanitas  Unisinos,  S. Leopoldo, 03 Nov. 2009, ed. 313, p. 20-23. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao313.pdf. Acesso em: 21 Jan. 2022.

 

CURTOIS, Stéphane et al.. O Livro negro do comunismo: crimes, terror e repressão. 16ª. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.

 

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[1] Mestre em Ciências do Ambiente pelo PPGCIAMB–UFT-TO; Pós-Graduado em Telemática pelo IFTO–TO; Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior pelo ITOP-TO e Graduado em Teologia pela FTSA-PR e pelo STBNB-PE. Professor de Teologia Contemporânea, História do Pensamento Cristão, História do Cristianismo e Filosofia no STBT, STBG e SETA, em Palmas TO. Membro da Igreja Batista Filadélfia, em Palmas – TO. Endereço eletrônico: diowalbr@gmail.com.

[2] O Incondicional para Tillich é o Sagrado, o Ser-Em-Si, o Numinoso, o Incriado, o Ser Necessário, em alemão o Das Umbedingte, algo próximo do que Agostinho ou Tomás de Aquino compreendiam acerca de Deus (TILLICH, 2005).

[3] O Ultimate Concern é Aquilo que nos toca incondicionalmente, sendo, portanto, a Preocupação Última que torna tudo o mais insignificante, mínimo e fugaz (TILLICH, 2002).

[4] A observação entre parênteses é feita pelo próprio Walter Benjamin, estando no original do documento escrito em alemão (BENJAMIN, 2013).

[5] Por crítica vertical, Tillich entende a presença do elemento transcendente em meio à crítica, que no pensamento marxista está completamente ausente, devido ao seu caráter imanente, histórico e temporal (TILLICH, 2010).

[6] Sobre a salvação, o apóstolo Paulo afirmou categoricamente em Efésios 2:8: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus;” (BIBLIA SAGRADA ALMEIDA SÉCULO 21, 2013).

[7] Distopia, cacotopia ou antiutopia é qualquer representação ou descrição social, política e econômica, cujo valor representa a antítese da utopia, ou promove a vivência em uma utopia negativa, marcada pelo caos, pela opressão e pelo sofrimento (JACOBY, 2007).  

[8] Necrofilia é uma expressão usada por Erich Fromm para designar a postura destinada à destruição, à morte e ao aniquilamento do outro, comum em determinadas ideologias, movimentos e em alguns tipos de pessoas, em especial, os líderes totalitários da primeira metade do Século XX, como Adolf Hitler, e outros (FROMM, 1992).

[9] Alguns teóricos marxistas foram: Friedrich Engels, Vladimir Lenin, Rosa Luxemburgo, Georg Lukács, Karl Korsch, George Plekhanov, Benedetto Croce, Hebert Marcuse, Antonio Gramsci, etc. (DORTIER, 2010).

[10] Segundo Tillich, hybris é uma palavra grega que pode ser traduzida por orgulho, vaidade, noção de grandeza, mas também como “elevação ao estado divino”. Era muito comum na tragédia grega, onde os heróis traziam para si a hybris, mas logo eram desmascarados pelos verdadeiros poderes divinos (TILLICH, 2010).

REFERÊNCIA: MAGALHÃES, Diogo Souza. Diálogos com Paul Tillich e Simone Weil: uma crítica filosófica cristã ao Marxismo. Revista Teológica Jonathan Edwards, vol. II, nº 2, 2002 (ISSN - 27-63-8561). Disponível em: https://www.stjedwards.com/revista. Acesso em: 16 jul. 2022.

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